O portão azul, entre esta casa e a rua, separa-me das pessoas que passam num ritmo determinado muito mais pelos sonhos de cada uma delas. Às vezes, sinto compaixão pela realidade que deve manter tais pessoas presas inexoravelmente à vida. Ainda bem que a pressa não lhes permite olhar para trás destas grades de ferro com igual empatia ou indiscrição: apiedar-se-iam dos meus sonhos. Os transeuntes não imaginam o que seja minha faculdade de pensar o tempo, de senti-lo presente. Algo que não sei explicar sem o auxílio da alegoria. Um imenso comboio que roda, o tempo conduz a todos nós, quer percebamos seu movimento ou não. Muitos de meus contemporâneos têm certeza do deslocamento de uma estação a outra, mas dificilmente se reconhecem como simples passageiros. No interior desse trem, tudo está imóvel, pelo menos na aparência, dos objetos mais corriqueiros às estrelas no céu (vistas pela janela). A ilusão de imobilidade ocorre, inclusive, com o observador em relação a si mesmo. Por isso dizemos que o tempo passa. São ainda mais raros os que sabem o aspecto mais perturbador da "viagem": dois vagões seguem atrelados ao nosso, cujo acesso nos é negado sempre. Do que vem atrás, temos a nítida lembrança de que já o conhecemos. Ali estão as imagens de pessoas, lugares e eventos que marcaram alguns momentos de nossas vidas. Quanto ao vagão da frente, a despeito de toda pressa e desejo, logramos alcançá-lo única e exclusivamente através do sonho. Passado e futuro. Certamente, as pessoas que sobem e descem a Bento Gonçalves não estão interessadas em saber tais coisas. Para elas, a pressa é sinônimo de responsabilidade, nunca o sintoma de uma doença moderna, a qual tem sua origem na relação desastrada que temos com o tempo: o estresse. Assim sendo, dirijo minhas reflexões ao leitor solidário que, neste instante, olha para dentro de si e descobre quê.
(Nesta meia-noite, brindo os leitores com uma das melhores crônicas que escrevi nestes anos.)