terça-feira, 14 de dezembro de 2021

FRUIÇÃO E CONHECIMENTO

 

            A leitura propicia, a um tempo, fruição e conhecimento. Mesmo os gêneros literários – romance, conto, crônica, poema – desencadeiam um processo cognitivo. Mesmo os gêneros filosóficos e científicos – ensaio, artigo, monografia, tese – despertam o prazer de grandes descobertas.

        A longa experiência como leitor eclético me descortina um mundo que amalgama saberes e emoções. Nesse sentido, compreendo que o conhecimento já se transformou numa paixão, como escreve Nietzsche no livro Aurora, aforismo 427.

        Nesta tarde, lia O suicídio do Ocidente, de James Burnham, quando me deparei com o seguinte: “Considero óbvia demais a discussão de que, se os Estados Unidos entrarem em colapso ou se tornarem insignificantes, o colapso de outras nações ocidentais não tardará muito”.

        Inobstante a obviedade considerada pelo autor, não me recordo de ter lido algo nessas palavras até então, conquanto defendo a ideia há bastante tempo. O colapso estadunidense, acrescento, colocaria em risco uma das maiores conquistas da civilização ocidental, a liberdade.

        Ao ler a passagem acima transcrita, senti certo contentamento por encontrar uma referência – a posteriori – à minha análise de um assunto tão relevante.   

segunda-feira, 4 de outubro de 2021

A GLÓRIA OU A MORTE

Uma tempestade matou cinco alpinistas no monte Elbrus, no Cáucaso russo, nesta sexta-feira.

       Gostaria de estar na companhia de amigos, para pensarmos juntos o paradoxo existencial referido de uma forma transversal pela notícia acima.

       Sozinho neste apartamento, começo a análise de uma forma dialética, hegeliana.

       Qual seria a tese?

   O homem desafia a natureza, para satisfazer seu espírito aventureiro, a praticar esportes de alto risco de vida. Ao lado do alpinismo, há o paraquedismo, o wing walking (equilibrar-se sobre as asas de um avião), o esqui off-trail (descer montanhas no esqui), rafting (descida em corredeiras dentro de botes), montaria de touro, entre outros.

       Qual seria a antítese?

       A morte, simplesmente.

       Para não me afastar do mote inicial, o alpinismo, mais de 300 pessoas já morreram a escalar o Everest, o pico mais alto do planeta. Altura, frio, vento, falta de oxigênio e exaustão física são algumas das causas que se opõem ao objetivo da aventura.

       O homem deixará de se aventurar, mesmo consciente de que corre risco de vida? Sua vida deixa de ter sentido sem a prática desses esportes chamados radicais? A liberdade para fazer escolhas perigosas constitui um bem?

       Qual seria a síntese? 

CANANÉIA

    Cananéia é o município mais meridional do estado de São Paulo, cuja sede dista 265 km da capital paulista. A vila de Maratayama (hoje Cananéia) fora visitada por Martim Afonso de Sousa em 1531, antes da fundação de São Vicente em 1532, oficialmente a povoação mais antiga do Brasil. Na falta de documentação comprobatória da precedência efetiva, Cananéia ficou sem essa honraria histórica.

        No centro velho de Cananéia, as casas ainda conservam o estilo arquitetônico do período colonial. As ruas são muito estreitas, dando passagem a apenas um automóvel. A avenida Beira Mar é a mais movimentada, com restaurantes, bares, pizzarias e vendedores informais, que atendem os turistas de final de semana. Rampas e escadarias dão acesso ao cais de onde zarpa a balsa para Ilha Comprida.

        O melhor passeio é andar de barco ou voadeira pela Baía dos Golfinhos até a Ilha do Cardoso. Por incrível que pareça, na Baía dos Golfinhos há golfinhos realmente. Eles fazem piruetas a dez metros da embarcação, em dupla ou trio, facilmente captáveis pelo clique fotográfico. A Ilha do Cardoso é uma reserva natural, com um núcleo de estudos ecológicos.

        A região produz uma árvore popularmente chamada de cataia, cuja folha entra na composição de uma bebida alcoólica muito apreciada, a cachaça de cataia. Quem vier à Cananéia precisa provar dessa cachaça, enquanto espera por um camarão, robalo, betara, siri, entre outros pescados. A gastronomia é um dos itens indispensáveis na agenda do turista, bem como o conhecimento do lugar (atestado por esta crônica).    

A BÍBLIA E OS CRISTÃOS

 

“A maioria das pessoas deste mundo

acredita que o Criador do universo

escreveu um livro”

Sam Harris

 

            A Bíblia é a palavra revelada – afirma a doutrina e acredita piamente todos os cristãos. O pressuposto é que houve um texto original ditado por Deus. A propósito, essa autoria transcendente caracteriza outros escritos religiosos e afins: Corão, Livro dos Mórmons, Livro dos Espíritos, entre outros.

            A crença é de que as diversas traduções dos textos originais, sua reescritura, acréscimos e cortes não comprometem a autenticidade da Bíblia. Destarte, existem atualmente pelo menos três versões diferentes: a Bíblia católica, a Bíblia evangélica e a Bíblia ortodoxa. As divergências de forma e conteúdo, todavia, são insuficientes para abalar o dogmatismo cristão.

            Ao longo dos primeiros séculos da Igreja Católica, as chamadas guerras santas foram sangrentas, com perseguições e execuções fratricidas, tudo pela injunção de um texto único, com uma interpretação convergente. Jesus é mais humano? Mais divino? Humano e divino ao mesmo tempo? Há outras possibilidades, como a compreendida pelos judeus, de que Jesus não era o Messias, ou a de alguns estudiosos sérios, que asseguram a não existência histórica de Jesus.

            A discussão não tem fim, malgrado a inadmissibilidade para o mundo cristão e a irrelevância para outros mundos.

            Ainda sobre a Bíblia, a edição evangélica, por exemplo, soma 66 livros, 1.189 capítulos e 31.103 versículos. Esses números são diferentes das demais bíblias. Se a versão primeira foi ditada por Deus, quem autorizou a supressão de 12 livros em relação à bíblia ortodoxa (mais antiga, mais próxima da origem)? Os textos suprimidos não se configuram uma afronta ao seu autor (que era bastante irado no princípio)?

            Por que os pregadores escolhem certos versículos e evitam outros? Por um lado, a fé é superestimada num contexto imaginário de adoração extrema. Por outro, nenhuma referência à obra coerente com os preceitos bíblicos.

            No dia a dia, fora do templo, a vida de muitos cristãos é de uma indisfarçável hipocrisia. Basta apenas o versículo 24, capítulo sexto de Mateus, para escancarar a contradição: “Ninguém pode servir a dois senhores; porque, ou há de aborrecer-se de um e amar ao outro, ou se devotará a um e desprezará o outro. Não podeis servir a Deus e às riquezas”.

            Obviamente, esse versículo nunca é citado pelos astutos propaladores da palavra. Ele nega frontalmente a doutrina da prosperidade, nega a conduta real da maioria cristã, ávida por dinheiro.

SUPERPOPULAÇÃO

 

         Os otimistas não se impressionam com a superpopulação, não a anteveem como um problema sério. Diferentemente, desde os anos oitenta, preocupo-me com o crescimento demográfico.

         Bem ou mal, todo o artifício tecnológico, potencializado de uma forma crescente, tem atendido à demanda de alimentação. Obviamente, isso ocorre às expensas da sustentabilidade, ou da preservação do meio ambiente.

         Os recursos naturais, independentemente dos processos para explorá-los, exaurem-se a olhos vistos. As alterações climáticas são cada vez mais agressivas para o cultivo do solo. Essa prática preexistia aos sumérios, povo que desapareceu em decorrência de problemas locais, semelhantes aos que já podem ser observados em âmbito global.

         Como alimentar 9,7 bilhões de bocas? Se tudo correr bem, o que é quase improvável, o número de subalimentados e famintos crescerá muito, a duplicar ou triplicar os 811 milhões atuais.

A fome será apenas uma das consequências inevitáveis da superpopulação. Outras serão factíveis, mais ou menos graves. Não as nomeio aqui em respeito ao bem-estar do leitor mais sensível.

           

quinta-feira, 5 de agosto de 2021

TIPO BRASILEIRO

        Pero Vaz de Caminha, escrivão da armada portuguesa que chegou a este continente em 1500, escreveu ao rei D. Manuel I:

A terra em si é de muito bons ares... Águas são muitas; infindas. E em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo, por bem das águas que tem. Porém o melhor fruto, que nela se pode fazer, me parece que será salvar esta gente. E esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza em ela deve lançar. [...] Quanto mais disposição para se nela cumprir e fazer o que Vossa Alteza tanto deseja, a saber, acrescentamento da nossa santa fé.

         Por que cito Caminha?

         Não é para trazer à baila a questão dos nativos, que deviam ser salvos pela doutrina cristã. A primeira coisa que diria a esse respeito é de que houve uma perdição imposta pela cultura eurocêntrica.

         A citação acima serve de mote para analisar meu patriotismo, o qual se encontra sub judice, nas mãos de um juiz extremamente (auto)crítico – a própria razão.

         No ano 2000, participei de um concurso nacional entre os universitários, que consistia em escrever uma carta aos portugueses, a tematizar tudo o que o Brasil tinha de melhor no presente.

         Sobre o território brasileiro, descrevi sua multifacetada natureza geográfica com a minúcia que faltou ao missivista apenas desembarcado de além-mar. Duas décadas mais tarde, não mudaria uma vírgula da descrição.

         O problema está em sua gente. Os índios não foram salvos ao longo da colonização e da nação independente. Hoje descrevo o povo como um motivo para repensar meu patriotismo. Mais que representá-lo no poder, os políticos constituem uma amostra do tipo brasileiro – para o qual não há salvação.

         Mario Quintana foi preciso: “Se eu amo o meu semelhante? Sim. Mas onde encontrar o meu semelhante?”. 

segunda-feira, 26 de julho de 2021

FILOSOFIA, PARA QUÊ?

          O senso comum pergunta com frequência, a denunciar a própria ignorância, qual a finalidade da filosofia. Toda resposta me parece perda de tempo, ainda que filósofos o fizessem desde Pitágoras. Por que “perda de tempo”? Cito apenas dois motivos: ou as pessoas que perguntam têm memória fraca, ou falta-lhes o interesse efetivo.

            Não bastasse as funções atribuídas à filosofia até o presente, funções exigidas na própria definição do termo, desenvolvi o argumento seguinte: o conhecimento de seres, coisas e fenômenos evoluiu para áreas cada vez mais isoladas umas das outras. Ciências muito próximas em suas origens, hoje não apresentam uma relação evidente entre si. Cabe à filosofia a tarefa de relacionar conhecimentos estanques, a partir de um mapa conceitual centralizado na vida.

            A despeito de se assemelhar ao paradigma da complexidade de Edgar Morin, a ideia acima me ocorreu antes de ler esse pensador francês. Coerente com esse pensamento, debruço-me sobre os livros de biologia evolutiva, física teórica, astronomia, psicologia, história, linguística, sociologia, arte (literatura) e filosofia desde os anos oitenta. Os livros fundamentam o discurso teórica; a realidade, constituída por seres, coisas e fenômenos, fundamenta a pesquisa de campo.

            Clément Rosset escreve em Lógica do pior (1989): “Se há uma tarefa específica da filosofia – e isso independentemente de seus interesses fundamentais, que, mais uma vez, são inteiramente outros –, esta seria a de curar o homem de sua loucura”. Em minha percepção, o homem necessita libertar-se da ignorância. 

quinta-feira, 15 de julho de 2021

TUDO PERMITIDO

        A noção moral de certo e errado precede o religioso, caso contrário o homem não teria sobrevivido longos milênios antes de pensar a existência da alma transcendente, de Deus e de todos os mitos que constituem as religiões. A organização social em família, clã, tribo e comunidades maiores é uma característica do homo biologicus.

         Alguns pensadores da ética, teístas inconfessáveis, recorrem à frase de Dostoiévski, de que sem Deus tudo seria permitido. Tenho minhas dúvidas se os citadores de Dostoiévski leram seu Os irmãos Karámazov. A citação é descontextualizada, tomada como uma afirmação. Na verdade, é uma pergunta. Mítia narra a Aliocha o diálogo que teve com Ivan (os três irmãos Karamázov): “Ivan não tem Deus... Eu lhe perguntei: ‘Então, nessas condições, tudo é permitido?’” (p. 682).

         A despeito de Dostoiévski ser um cristão ortodoxo, não afirma que sem Deus tudo seria permitido. O “sim” da resposta é um dos pressupostos. Há o “não”. Não li até o presente que se tudo é permitido, também o é a moralidade sem Deus. Dizer que haveria um retorno à horda se a não existência de Deus viesse a ser confirmada já reflete o espírito cristão, propenso a depreciar o homem natural.

         A secularização é um processo civilizacional que já aprova que o tudo permitido sem Deus pode ser benéfico à humanidade. 

quinta-feira, 24 de junho de 2021

A ALMA DA IMPACIÊNCIA

 

            O título acima é um dos tópicos do capítulo A lenda do humano imaterial, do livro Homo biologicus, de Pier Vincenzo Piazza (2021). O livro é atraente desde a primeira página, talvez porque remete o leitor ao paradigma da biologia, que passou a dominar o mundo científico.

            Piazza encanta por sua ironia cavalheiresca, algo muito raro nestes dias em que prevalece a grossura deslavada ou a sensibilidade excessiva. Eis a prova disso:

 

O ato de fé [...] é a arma inelutável da metafísica religiosa que divide os homens em duas categorias com capacidades diferentes. Um primeiro tipo de Homo sapiens possui um sexto sentido que lhe possibilita ver e sentir coisas imateriais completamente inacessíveis ao segundo tipo de ser humano, que só tem os cinco sentidos clássicos. O problema é que esse sexto sentido tem a especificidade de não ser comunicável aos que não o possuem (pp. 28-29).

 

            O que os humanos de seis sentidos veem (sentem e pensam) não é demonstrável aos de cinco sentidos, tampouco o é refutável por meio da ciência. Por outro lado, os humanos de cinco sentidos não conseguem demonstrar que o sexto sentido não existe. O paradoxo assim se constitui em síntese.

            Ante a dificuldade de se chegar a um acordo, Piazza propõe uma outra formulação do problema.

 

Tenho cinco sentidos, meu amigo diz que tem seis. Se seu sexto sentido não existe, por que ele está convencido, com toda boa-fé, de que o tem? A única explicação é que precisa dele. Por quê? Simplesmente para explicar certo número de coisas que não são possíveis de compreender de outra maneira. Visto assim, o homem de seis sentidos poderia apenas ser alguém que sente medo ou ansiedade diante da ignorância. Consequentemente, quando não conhece, ele inventa (p. 29).

 

            A diferença entre humanos de cinco e de seis sentidos pode significar que uns são pacientes e outros, apressados. Esta é a grande sacada do autor, que é médico psiquiatra, com estudo inovador sobre as bases neurofisiológicas da toxicodependência e da psicopatologia.

            Os apressados respondem suas dúvidas com a imaginação. Os pacientes, ao contrário, admitem a própria ignorância e vivem com as incertezas (que acabam ser respondidas um dia por conhecimentos comprovados).

         Piazza esclarece que sua intenção não é negar a fé ou Deus, mas buscar uma resposta para a origem da “lenda da alma”. Seu livro atende os pacientes, que esperam o esclarecimento de suas dúvidas; bem como os apressados, que podem retificar o que viram (sentiram e pensaram) cedo demais.

quarta-feira, 23 de junho de 2021

PANDEMIA: UMA REFLEXÃO

         A COVID ainda causará muito sofrimento no mundo, pela perda de pessoas vitimadas por ela. A existência daqueles que se defrontam com a morte de um parente não é mais a mesma doravante. Certamente, essa constitui a mais dolorosa consequência da pandemia.

          Outras constatações, que são leitura dos fatos, evidenciam-se cada vez mais, à medida que passam os dias. No indivíduo, o âmbito mais restrito, pode-se constatar o medo e a ansiedade. Ainda não é possível saber para que lado ele seguirá, ou para o isolamento em si mesmo, egocêntrico, ou para a alteridade, para uma abertura intersubjetiva.

         No âmbito mais abrangente, o das nações politicamente organizadas, ao mesmo tempo, observa-se o fechamento de fronteiras, por um lado, e a ajuda internacional, por outro. A regra tem sido o isolacionismo, com o fito de evitar o inevitável. A exceção é representada pelos Estados Unidos, com a distribuição gratuita de vacina.

         A pandemia coloca à prova a capacidade do indivíduo de se autocontrolar psicologicamente, sem negar o valor incomensurável da vida. Da mesma forma, testa a globalização, uma superestrutura idealizada por todos, mas que se instabiliza ante os interesses políticos e econômicos de estados nacionais.

           A consequência derivada da dor consiste no aprendizado que todos adquirimos verdadeiramente: a ciência como um bem humano, capaz de mitigar nossos sofrimentos e, principalmente, libertar-nos da ignorância.  

quinta-feira, 22 de abril de 2021

CRÔNICA DA ILHA DO MEL

Uma ilha tem o inconveniente de estar isolada por água, pensa o senso comum do continente.

Esse pensamento me ocorreu ao ver uma ilha distante a primeira vez - com olhos de um interiorano.

O ilhéu, por sua vez, pode ter o mesmo ponto de vista, de se sentir isolado, sempre a depender de uma embarcação para sair da ilha, ao encontro da cidade grande (com suas benesses exclusivas). As dificuldades impostas pelo isolamento, não raro, justificam vontade e esforço no sentido de mudar da ilha.

Entretanto, há outra possibilidade, que é do domínio do insular, o isolamento, de sentir-se bem na sua ilha.

Na terceira vez que venho à Ilha do Mel, conheço quem não mais deseja voltar ao continente. Ele é feliz aqui, malgrado o modo de existência mais simples.

Ante a extensão de água (em torno de 4,5 km), que separa Ilha do Mel e Pontal do Sul, concluo pela variável em favor do ilhéu. Nesta terceira visita à ilha, percebo o quanto a vida aqui pode ser melhor.

ILHA DO MEL E OUTRAS ILHAS


As histórias de ilha me encantam desde menino, quando li uma adaptação de Robinson Crusoé, de Daniel Defoe. A literatura foi e continua sendo um caminho para meu espírito aventureiro.

Limitado pelo rio (norte e oeste), pela Serra (sul) e pelos coxilhões (leste), o Rincão dos Machado representa uma ilha, onde estabeleço um distanciamento voluntário.

De tempo em tempo, necessito do sossego do rincão, nem que seja para ouvir o vento ou o silêncio e ver o céu azul das manhãs ou estrelado das noites limpas.

Hoje contemplo a faixa de mar que separa a ilha do continente. As vagas se desfazem em espumas na areia ou chicoteiam os rochedos nos extremos da praia.

Esta é a terceira vez que venho à Ilha do Mel, em sua parte mais conhecida como Encantadas. O topônimo é derivado de uma lenda, mas expressa uma sensação real como um prazer indescritível de se estar fora do redemoinho incômodo da vida pós-moderna.

Na ilha, o distanciamento é visual, na medida em que o continente está lá, separado por milhas de água. O distanciamento também é auditivo, na medida em que a algaravia da cidade grande é silenciada pelo marulho das ondas.

Os dois sentidos acima, todavia, não determinam o que a insularidade oferece de melhor: a tranquilidade (estado isento de agitações, inquietações ou perturbações).

A literatura criou ilhas, para que o homem pudesse se aventurar utopicamente. Em sua criação, ela imitou a realidade, a seguir os passos de Safo, a poetisa grega que compunha para lira na ilha de Lesbos. A pintura se isolou no Taiti com Paul Gaugin, para se libertar da França civilizada. A ciência fez sua maior descoberta nas ilhas de Galápagos com Charles Darwin, longe do glamour da Inglaterra vitoriana.

A Ilha do Mel poderá se transformar em literatura, em poesia. Antes que isso aconteça, ela é real, lugar onde é possível um modo de existência simples.


quarta-feira, 14 de abril de 2021

AMOR EM TEMPOS DIFÍCEIS

 

        O amor em tempos difíceis continua a conjunção de astros, o ramalhete de flores, o amálgama de metais raros, a combinação de doces saborosíssimos, enfim, a soma de muitos sentimentos, qualidades ou atitudes que o constituem desde muito.

       Ao dizer “flor”, por exemplo, o poeta diz cherry blossom, cravo, gérbera, rosa, violeta... Esses nomes são hipônimos de flor, o hiperônimo. Ao dizer amor, o poeta diz cumplicidade, eroticidade, fidelidade, gentileza, reciprocidade... Essas flores compõem o grande ramalhete, cuja beleza e perfume excedem qualquer limitação temporal.

       A rosa que se quebra ou murcha compromete o ramalhete por inteiro. As outras flores são insuficientes para mantê-lo belo e fragrante. A fidelidade que se nega ao outro, ao ser amado, impossibilita o amor por inteiro.

       Aquele que ama verdadeiramente sabe o significado e a relevância de cada flor, de cada sentimento, qualidade ou atitude para o todo. O bom jardineiro não desiste de suas flores, simplesmente porque o tempo não é favorável a elas. O amante pega atalhos, quando a reta do tempo linear se entorta, ou quando o tempo circular vira rotina viciosa.

         O amor é a possibilidade de saltar para fora do tempo, seja este difícil ou não, sombrio (segundo uma denominação de Hannah Arendt) ou não, ao viver o instante – e sua eternidade.  

 

EMPREENDEDORISMO

 

        O termo “empreendedorismo” significa, stricto sensu, o processo de iniciativa empresarial nos diversos setores da economia. Num mundo dominado pela técnica e pelo mercado, faz muito sentido a figura do empreendedor.

   O problema não é a definição do que seja empreendedor, empreendedorismo (conhecimento generalizado), todavia, as dificuldades que se interpõem entre o projeto empreendido e a sua realização concreta. Isso é expresso na proposta de Cléber Prigol.

         Ante a constatação empírica dos óbices por ele enfrentados, meu interlocutor queixa-se da quase impossibilidade de empreender no Brasil. Não encontro palavras para minimizar seu desencanto, pelo contrário, tenho a dizer-lhe coisas pouco agradáveis.

         Todo empreendimento, com algumas exceções, como no agronegócio e na construção civil, sofre absurdamente com a pandemia – fator que ultrapassa os entraves criados por uma política econômica incerta. Tais entraves preexistiam à COVID, determinados por uma crise não reconhecida, malgrado de espectro global.

         Ao contrário do agro e da construção (com financiamentos retornáveis), setores, como transporte e hotelaria, ficaram reféns do problema sanitário.

         Nosso país é incomparavelmente menor que os Estados Unidos. Não possuímos lastro para injetar trilhões na economia. Como recuperá-la se ainda persiste a causa maior que provoca sua queda inexorável?

         O empreendedor necessita destinar sua vontade mais resiliente num novo projeto. Para elaborá-lo, ele terá tempo de sobra (numa perspectiva, ora animadora, ora pessimista).   

SOBRE A MORTE

 

         Alana me sugere o tema mais perturbador entre os demais: a morte. A jovem me diz que tem refletido muito nos últimos dias, ante a perda de pessoa próxima para a pandemia. Nunca estamos preparados para “algo que é natural”, no entendimento correto da minha colega de filosofia.

         Três aspectos em relação à morte exigem uma distinção: a morte como experiência de cada um com seu ente querido; a morte como horizonte inexorável, fonte de angústia profunda; e, por último, a morte como catástrofe física e psicológica. A angústia, cujo âmbito é a consciência, regride para o instintual, que Freud chamou de Thanatos.

         Sobre o primeiro aspecto, a perda do pai, da mãe, do irmão ou do filho não encontra consolo nas palavras, tampouco é mitigada pela crença em uma vida-além. Quem está de fora não consegue empatizar com o outro, que se encontra preso ao círculo de sofrimento. Em tempo de pandemia, esse círculo ocorre com uma frequência nunca vivenciada anteriormente – o que poderá diminuir seu conteúdo de dor. Ademais, a vida continua com seus desejos, suas vontades, suas razões.

         O segundo aspecto está relacionado à condição do ser único que sabe de sua finitude: o homem. A morte pertence a sua existência, tem um sentido para ele (na contramão de tudo mais), que é autopreservação, autorrealização, Eros.

         A terceira consideração me remete à morte como um espectro antes de sua aparição. A morte ainda não chegou, malgrado o prazo a todos, a exemplo do protagonista do filme O sétimo selo (de Ingmar Bergman). Essa espera gera medo, pavor e doença, males que têm na fé e na razão meros paliativos.

         As três abordagens acima não esgotam o tema, uma análise demorada exigida pelo tema. Resumo-as pelo viés da relação social (afetiva), da consciência existencial e da patologia. Assim mesmo, espero ter tocado em alguns pontos axiais desse assunto delicado e (repito) perturbador.

O QUE É A VERDADE?


        A pergunta “o que é a verdade?” se tornou uma obsessão do intelecto humano. Nenhuma resposta o satisfez até o presente. Entre os sábios, há quem responda com o silêncio – o que torna a verdade mais enigmática, mais desejada.

           A pergunta em si pressupõe um atributo da verdade, um ser ela mesma. Antes de constituí-la ontologicamente, deve-se inverter a questão: a verdade é?

           A verdade é algo independente do homem e de sua linguagem?   

           A afirmação dessa independência não escancara uma forma de alienação? Parte do mal no mundo não se origina do sim, que personifica ou que deifica a verdade?

           Na antiguidade, a verdade foi atribuída à physis (natureza, cosmo). Na Idade Média (com domínio exclusivo da mítica judaico-cristã), a verdade foi elevada a Deus. Na Modernidade, ela foi atribuída à razão.

           A Modernidade, todavia, passa a olhos vistos, e a verdade se dilui (ou se liquidifica, segundo Bauman) com o niilismo contemporâneo, num novo período civilizacional caracterizado pela pós-verdade.

           Neste período, está em curso a desmitificação da verdade, ou de sua ideia, de seu valor pressuposto. Em Nietzsche, Para além de bem e mal, pode ser lido: “Por que não preferir a não verdade?”.

           Ademais, a crença na verdade não propiciou uma existência melhor, conforme prometiam seus avatares, filósofos, teólogos e cientistas.