terça-feira, 15 de setembro de 2020

GRANDE CONSTITUIÇÃO TURCA

Como a Turquia ainda consegue ser um Estado laico, se quase a totalidade da população é islâmica?

Essa questão desafiadora ocorreu-me ontem, quando assistia ao filme Mucize (O milagre)*. O professor Mahir voluntariou-se para dar aulas num vilarejo distante entre as montanhas do oeste turco. Ao chegar lá, depois de uma longa caminhada, Mahir constata que não há escola desde sempre. Seus moradores são analfabetos e vivem segundo um sistema moral fundamentado na tradição. Antes de tomar o trem de volta, Mahir decide ficar e construir a escola, com apenas uma condição: a inclusão das meninas. As instalações foram erguidas rapidamente com a ajuda de “bandoleiros”, gente do lugar que vive à revelia da lei.

            Sem o conhecimento necessário, sou instado a pensar de acordo com o estereótipo de que os países islâmicos do Oriente são governados teocrática e ditatorialmente, cujos exemplos mais conhecidos são o Afeganistão, a Arábia Saudita e o Irã. A Turquia, todavia, representa uma bela exceção. Esse país é democrático, ordenado juridicamente por uma das melhores constituições do mundo (reeditada em 1982).

            Num tempo em que os regimes democráticos do Ocidente se permitem laivos conservadores, de fundamentalismo religioso, de recaída fascista, de inclinação de direita ou de esquerda, a Turquia continua o Estado democrático, secular. Embora o presidente Recep Tayyip Erdogan tenha apoiado o domínio muçulmano, com a conversão de igreja ortodoxa cristã em mesquita, a constituição turca transcenderá a esse político. Obviamente, o país sofre outras ameaças políticas, como a organização marxista dos curdos e a tensão com a Grécia.

             A laicidade da Turquia, ouso dizer, representa uma das maiores barreiras intercontinentais para o avanço islâmico em direção ao Ocidente.

                   

* Filme turco lançado em 2015, dirigido por Mahsun Kirmizigul. 

segunda-feira, 7 de setembro de 2020

ANA SAUDADE (conto)

        A trilha molhada até a várzea não firma os tamanquinhos já gastos de Nenê e Menina. Ana os segue de perto, a pedir que os pequenos tomem cuidado para não cair no barro. Mais abaixo, os três pegam uma estrada melhor entre o morro e o Rosário.

        A caminhada não termina na Sédia, onde moram famílias com mais haveres. Nenê sonha de olhos abertos, azuis como a nesga de céu que se mostra por trás das nuvens:

        – Mãe, por que a gente não se muda pra cá?

      Ana sorri com a pergunta, balança a cabeça negativamente. A menina adivinha seu desejo inconfessável? Outra coisa a preocupa nesta tarde, como tantas tardes dos últimos dois anos. Otávio prometeu-lhe escrever do Rio de Janeiro. Uma carta veio há dois Natais. A saudade continua a crescer no peito como um espinheiro.

       Nenê e Menina diminuem o passo, admirados com o movimento da vila.

         Andem! Andem! Não querem ver o trem? Na volta, vamos à igreja.

           Ainda falta meia hora para chegarem à estação do Curussu.

           Sobre a ponte, Menina joga uma pedra no rio. Inutilmente, o guri vira a cabeça para ouvir o choque da pedra com a água. A ponte é alta demais. Com os tamancos na mão, corre para alcançar a mãe e a irmã.

           Uma subida longa do outro lado do rio exige força na perna. A conversa cansa mais agora, mas assim que eles chegam ao plano, Menina indaga a mãe:

           – O trem vem daonde?

           – Já te disse dez vezes, Menina. O trem vem de Porto Alegre e vai para São Borja.

           – Um dia quero ir pra São Borja.

           – Eu quero pra Porto Alegre – Nenê o contraria.

           – O trem não demora, depressa!

           A ponte da ferrovia, segmentos da linha férrea e a estação de Curussu são vistas do morro. O coração parece sair pela boca dos meninos. A paisagem é muito diferente da serra onde moram, rodeada de canavial e mataria.

           Um apito é ouvido. A locomotiva faz sua aparição, como se flutuasse no meio da fumaça produzida por ela. O ritmo das explosões e do bater metálico das bielas diminui a frequência. A parada está próxima. Ana e os filhos chegam finalmente.

           Alguns passageiros descem, outros sobem para dentro dos vagões. A viagem termina, inicia-se ou continua (para aqueles que permaneceram no trem). Ana, Nenê e Menina assistem estupefatos ao movimento da estação.

           O ritmo das explosões e do bater das bielas aceleram. A locomotiva expele fumaça para todos os lados. As rodas começam a girar num chiado ensurdecedor. O trem parte boqueirão afora. Curussu volta a fazer silêncio.

           Ninguém ouve o coração de Ana, quando se dirige ao responsável pela estação. Ela veio muitas vezes à espera da carta de Otávio, o filho que foi embora e não dá notícia há dois anos. O ferroviário procura entre os envelopes que tem nas mãos.

           – Nada, dona Ana!