quarta-feira, 19 de junho de 2019

RINCÃO DOS MACHADO: UM CADINHO DO MUNDO


          Os últimos cem anos registram uma transformação social, econômica e cultural no Rincão dos Machado, que servem como amostra de aspectos comuns à evolução de toda a história humana. Sem reduzir o universal à minha aldeia (como o sugeriu Leon Tolstoi), esclareço a sentença acima com a referência de quem esteve presente no torvelinho de algumas mudanças.

         Há um século, o rincão não passava de um espaço devoluto, fundo de uma fazenda gigantesca, onde o gado vivia como bicho bravio. Uma relação escassa de artifícios, como um forno de pedra, um palanque de cerne de angico, uma taipa na restinga e pouco mais, atesta a presença de dois ou três moradores antigos. Mais conhecidos do Epa(minondas), eles pertenceram a uma época anterior. Dessa forma, a chegada de Firmino Machado, à frente de sua família numerosa, demarca o início da ocupação efetiva do rincão – feito que se repete desde as primeiras comunidades agrícolas.
         O vínculo consanguíneo fortaleceu a unidade moral do clã dos Machado, cuja autoridade maior era Firmino, pai, avô, bisavô, irmão, cunhado, tio, ascendente de quem estabeleceu novas famílias na localidade. Todos o respeitavam sem a necessidade de sua palavra resoluta, nunca opressora. Esse sistema social também remonta às comunidades primitivas, que dependiam de deveres (e valores) para sobrepor-se aos excessos pulsionais de seus integrantes mais jovens.
         O vô Firmino trabalhava muito, como o exigia todo pioneirismo fundador. O domingo, todavia, ele reservava ao descanso, quando mais se cansava atrás de veado em suas terras e no outro lado do rio. A propósito, esse instinto de caçador obedecia ao gene moldado evolutivamente ao longo do Paleolítico. Alguns anos depois de sua morte, o Rincão dos Cervos ganhou a denominação toponímica hoje conhecida: Rincão dos Machado.
         As casas no rincão eram construídas com a madeira tirada no mato nativo, que cobria encostas e várzeas à beira do Rosário. Os alimentos postos à mesa resultavam do trabalho duríssimo de todos por meses a fio, com o preparo da roça, plantio, limpeza e colheita. A tecnologia disponível em pouco se distinguia da empregada por agricultores sumérios: foice, arado pula-toco, cavadeira, enxada, braço, sangue e suor. Entre o Tigre e o Eufrates, produzia-se com a ajuda da água (trazida por um sistema de irrigação); no rincão, necessitava-se do fogo (controlado por aceiros).
         O trigo representava a base da agricultura: uma parte atendia ao consumo de subsistência, e a outra excedente transformava-se em moeda de troca. Mais tarde, a planta passou a cair de rendimento, o que forçou a sua substituição pela soja. Logo o mercado mundial fez desse feijão exótico (no rincão) uma commodity. O trator tomou o lugar dos bois de canga. O campo limpo, antes exclusivo para a criação, fez-se lavoura. A produção quintuplicou, para o regozijo de todos. Acertadamente, o rincão não abandonou o plantio do feijão tradicional, do milho, da mandioca, de frutas e verduras diversas.
         A tecnificação agrícola e a eletricidade (que chegou tardiamente em meados dos anos oitenta) são responsáveis pela nova fisionomia do rincão, a arrancá-lo do estágio agrário em que foi gestado social, econômica e culturalmente. Ele ainda passa por um processo de urbanização, de globalização, malgrado o número reduzido de habitantes. Alguns Machado, que foram embora antes dessa transformação radical, hoje recordam o rincão perdido no tempo, paraíso bárbaro da infância.
As mudanças ocorrem num fluxo que se acelera continuamente. Depois da sua revolução industrial, o rincão passa a se conectar com a Internet. Nos próximos cem anos, tudo poderá acontecer de uma forma casual ou determinada, como o despovoamento humano, acerca do qual o rincão também representa uma amostra. 

segunda-feira, 17 de junho de 2019

CORPO E ALMA


ERRO MILENAR

         O mundo em que vivemos é o melhor dos mundos possíveis, não obstante o esforço humano de torná-lo o pior dos mundos possíveis. A esse pensar e fazer o pior dos mundos possíveis, que ninguém antes de Nietzsche percebeu tratar-se do verdadeiro niilismo, inclui-se a divisão entre corpo e alma.
         Na Antiguidade, em torno de dois milênios e meio antes do presente, Platão filosofava sobre a existência e a imortalidade da alma – inteligível, perfeita e divina. O corpo, ao contrário, não passava de um “acidente exterior”, que deveria ser adequado por intermédio da ginástica a hospedar sua antípoda ilustre. A aproximação entre ambos era provisória. Uma vez que o corpo pertencia ao sensível, uma sombra no fundo da caverna. Platão instaura o dualismo.
         Na Idade Média, o corpo foi desprezado, flagelado e, com a Inquisição, queimado em praça pública pela Igreja Católica. Grande obstáculo para a vida ascética, o corpo era tido como a prova material do pecado. A alma que não aprendesse a dominá-lo arderia eternamente no inferno. A dualidade criada por Platão ganhou uma interpretação mística no neoplatonismo e se consagra como dogma nas religiões cristãs.
         A modernidade começa com Descartes ao propor um método seguro para conhecer a verdade: a dúvida. O filósofo racionalista começa bem, como um pirrônico tardio. Todavia, ele logo chega à primeira certeza, o “cogito ergo sum” (“penso, logo existo”). A partir da constatação indubitável do eu pensante, a racionalidade conclui que o pensamento não necessita de uma extensão no espaço, de uma experiência sensorial, de um corpo. Nesse aspecto, há um retrocesso a Platão. Corpo e alma são substâncias diferentes, sem relação uma com a outra (exceto pela mediação da glândula pineal). O corpo é uma máquina, que se desgasta e chega ao fim. A alma é imortal.
         Na contemporaneidade, o corpo começa a recuperar sua importância perdida com o discurso de Zaratustra de Nietzsche: “Corpo sou eu inteiramente, e nada mais; e a alma é apenas uma palavra para um algo do corpo”. A crítica nietzschiana à fé e à razão ao mesmo tempo vem ao encontro do processo secular, que está em curso com o propósito de assegurar um mínimo de sensatez à civilização ocidental.
         A separação entre corpo e alma criou um desajuste com consequências duradouras para a saúde do homem. O corpo, por sua vulnerabilidade natural aos males, foi desde cedo estudado pelas ciências médicas. Muitas doenças foram evitadas ou curadas, e muitos órgãos foram operados ou transplantados, a propiciar uma vida mais longa, com maior qualidade. A alma era imortal, acreditava-se desde dois milênios e meio antes do presente. Essa crença justifica de uma forma indireta o surgimento de algumas doenças, como a ansiedade e a depressão.
         O corpo e a alma se amalgamam em tempo pós-moderno, quando necessitamos repensar este mundo e refazê-lo o melhor dos mundos possíveis. Talvez ainda não seja tarde para uma realização tão extraordinária.

REMEMBER


NATUREZA, ARTIFÍCIO E UM SENTIMENTO


         A tecnologia exerce uma atração em mim desde a infância, quando vivia cercado pela natureza excedente do rincão. Toda vez que o ronco de um motor cortava o silêncio da manhã, eu saía para fora na expectativa de ver algo diferente. Eufórico, gritava para as irmãs me ajudarem a identificar o monomotor a cruzar a abóboda azul.
         Aos onze anos, conheci a cidade no outro lado do horizonte. O mundo se ampliava para além das linhas alcançadas pelos meus olhos carentes de lonjuras. Em meio a tanto barulho, movimento e reflexo, de repente me vi desorientado num âmbito completamente outro.
         No segundo dia, um avião cruzou o céu muito próximo da casa em que estava hospedado no Alto da Boa Vista. Ao vê-lo tão baixo, corri na direção em que ele sumia por detrás dos eucaliptos. Sem me dar conta, atravessei uma colina (hoje completamente urbanizada), passei por duas ou três cercas de arame, até enterrar minha botinas na lama de um açude grande que desbordava inutilmente.
         Em meu retorno, fui recepcionado por uma turma que se formara logo depois de alguém me ver correndo na direção do aeroporto. Não entendi a zombaria toda, a assimilar o riso sem o rubor que acompanha o momento da humilhação. Ainda tinha a ingenuidade de uma criança, de uma criança nascida e criada no interior antes da eletricidade, do rádio e da televisão.
         Em Curitiba, há dois aeroportos: Afonso Pena (para voos internacionais) e Bacacheri (para aviões de pequeno porte). Todas as noites, ouço e vejo as aeronaves passarem muito próximas do prédio em que estudo filosofia, no centro da Capital. Todos os dias, ouço e vejo jatinhos e monomotores a cavaleiro do meu bairro. Ainda sou tomado pelo prazer de ouvir o ronco dos motores desses aviões grandes e pequenos, de vê-los suspensos no ar como por milagre.
         O rincão me trazia dentro naqueles anos distantes. À medida que passei a conhecer o mundo, ele foi se apequenando em sua dimensão geocultural. Hoje está protegido dentro de mim, virou um sentimento.  

sexta-feira, 7 de junho de 2019

EXTINÇÃO DE MASSA


EXTINÇÃO EM MASSA: O HOMEM
NÃO ESCAPARÁ DA PRÓXIMA


As pessoas precisam aprender a olhar para a vida como unidade de conteúdo, malgrado a diversidade das formas.
Froilam de Oliveira

         A última do feed de noticias: “De acordo com um relatório do Breakthrougt National Center for Climate Restoration, a civilização humana pode ser devastada até 2050. Calor infernal e colapso de ecossistemas inteiros”.
         O alarme com o acúmulo de Dióxido de Carbono (CO2) na atmosfera da Terra procede de uma lembrança impregnada no DNA da vida. No final do Período Permiano (Era Paleozoica), houve a maior extinção em massa já existente no planeta. Não fosse os 10% das espécies que sobreviveram, a vida teria sido completamente exterminada.
         O que aconteceu por volta de 252 milhões de anos atrás?
         A geologia é leitura confiável, bem como a paleontologia. Com base nessas ciências, começo falando sobre a relação nem sempre harmoniosa entre a crosta e o manto terrestre (sob nossos pés). O manto é a camada mais extensa do globo, localizada logo abaixo da crosta, a parte endurecida de 0 a 40 km de espessura. A alta pressão e temperatura impedem que o manto se solidifique, constituindo-se numa “geleca extraviscosa”1. No interior do manto, há correntes de lava que se deslocam de um lado para outro, para cima e para baixo, rios loucos e violentos (não necessariamente nessa ordem).
         No final do Permiano, as lavas irromperam na região da Sibéria. Não existiam vulcões como os conhecemos hoje, em forma de cone no alto das montanhas. Eles eram aberturas no chão, com quilômetros de extensão, que expeliam o material vindo de baixo por anos, décadas e séculos. A lava representava um perigo evitável pelo simples afastamento, mas o calor e os gases tóxicos afetavam quase todo o planeta.
         O CO2 expelido pelas erupções siberianas causou um efeito estufa de grandes proporções, queimando a vida mais sensível, a começar pelos grandes anfíbios e répteis. Cerca de 90% das espécies foram extintas. Um efeito mais devastador que a extinção ocorrida no final do Cretáceo, há 66 milhões de anos, quando os dinossauros foram exterminados quase que abruptamente.
         O homem potencializa a emissão de CO2, somando-se aos outros emissores naturais. Todavia, ele o é de uma forma consciente, sabe que suas ações são escatológicas, levam ao fim da própria espécie. Isso vai acontecer certamente, mais cedo ou mais tarde do que profetizam os catastrofistas.
         A lembrança das antigas extinções em massa (em número de cinco) não foi de todo apagada da memória celular da vida. Graças à evolução da consciência, o homem é o único que sabe antecipadamente sobre sua própria extinção futura. Isso não é um privilégio, senão um motivo de assombro e de angústia.

1.  Assim se expressa Steve Brusatte em Ascensão e queda dos dinossauros (2019, p. 21).

segunda-feira, 3 de junho de 2019

PRIMEIRA CRÔNICA AO POETA (IN MEMORIAM)

ORACY DORNELLES


         Oracy Dornelles faleceu domingo, no começo do mês em que completaria 89 anos de idade. O poeta tinha uma existência mais longa, como ele mesmo dizia em tom de pilhéria. Inicialmente, parnasiano (com o rigor formal de seus versos); simbolista (com o caráter pessoal, idiossincrásico); modernista (com a exploração dos aspectos fônicos, morfológicos, sintáticos e semânticos das palavras e frases); e, por último, flertou com a tecnologia digital (a produzir “infopoemas”).
         Nossa amizade se iniciou no ano de 1983, quando o encontrava na sala de Arquivo da Prefeitura, nos bancos da Praça Moysés Vianna, ou na sua casa pintada de sol. O Oracy lia seus poemas mais recentes para mim, com ênfase nos recursos literários. Um tanto receoso, mostrava-lhe os meus. Toda vez honestíssimo nas avaliações, ele me apontava os erros e acertos: ruim, bom ou espetacular. Graças à compreensão de suas críticas, sem melindre ou empáfia, tornei-me poeta de fato.
         Na Universidade, escolhi a magnus opus oracyana, para escrever o artigo científico Intertextualidade nos cantares ares de Oracy Dornelles. O texto foi incluído no livro O que importa em Oracy, publicado em 2003 com Fátima Friedriczewski e Júlio Prates. A alusão indireta a outros textos nos poemas do Oracy exige do leitor conhecimento de mitologia (egípcia, judaica, grega e moderna), história, filosofia, arte, metalinguística etc.
         Desde Ponteiros de palavra, venho fazendo referência a Oracy, com a admiração própria de um influenciado verdadeiro. Um desses tributos consiste no soneto monossilábico Ora: ora/ só/ ora/ com// ora/ cor/ ora/ som// ora/ céu/ ora// ser/ ora/ cy. Sempre me fiz presente nas várias ocasiões em que a Prefeitura, o Centro Cultural e a Casa do Poeta renderam homenagens ao poeta em vida.
         Na Santiago que conheci há mais tempo, havia um poeta só. Ele vinha e ia por uma via de pó, pedra e poesia. Esse poeta era Oracy Dornelles, a vir e ir pela Duque de Caxias. A propósito, a Rua dos Poetas deverá homenageá-lo com uma estátua monumental – a destacar sua cabeleira (encimada por uma boina), seu paletó, seu livro na mão, seus passos seguidos pelos cachorros fiéis.