quarta-feira, 28 de setembro de 2022

MEIO TERMO

Ante a dúvida se vivemos no melhor dos mundos possíveis, os contemporâneos percebem um meio termo entre Leibniz e Voltaire, ou seja, nem o melhor dos mundos possíveis nem o pior. Os mal-estares destes dias denegam o excesso de otimismo; por outro lado, as conquistas da civilização (especialmente do lado ocidental) depõem contra o pessimismo. A degradação ambiental, as doenças (do corpo e da alma), as guerras e a fome são apenas alguns dos fatores que tornam o mundo uma distopia, um lugar de vida não prazerosa. A propósito das guerras, ainda estamos muito próximos do século XX, o mais belicoso de todos os tempos (levando-se em conta o poder de matar massivamente). O conflito Rússia versus Ucrânia ainda remonta à belicosidade que caracterizou a relação de poder entre estados nacionais. Charles Taylor, filósofo canadense, aponta três mal-estares da atualidade, todos relacionados ao indivíduo, sem a amplitude acima referenciada: o individualismo, a primazia da razão instrumental e a restrição de escolhas. Em poucas palavras, o centrar-se em si mesmo, a desconsideração do outro e a perda de liberdade. Não obstante apostar no ideal da autenticidade, o pensador destaca esses problemas (a serem resolvidos exatamente pelo indivíduo que exacerba em suas idiossincrasias). Não há resolução para o paradoxo entre o melhor e o pior dos mundos possíveis. Os extremos são inevitáveis (e até necessários), mais ou menos equidistantes da mediania. A realidade é o que é, independentemente da ação humana, sempre alternante entre bem e mal.

sábado, 25 de junho de 2022

A ARTE DE ESCREVER

Com o fim de introduzir o tema a ser abordado por nós, sugiro-lhes uma digressão para aclarar o significado da frase “a arte de escrever”. O que vem ao nosso pensamento, no instante em que falamos ou ouvimos, escrevemos ou lemos “a arte de escrever”? Que significado damos a essa associação de fonemas ou de signos gráficos? Há duas interpretações em razão da amplitude, ou extensão semântica: na primeira delas entendemos que a escrita possibilita uma arte, como a poesia; na segunda interpretação, que a escrita por si só é uma arte. Stricto sensu e lato sensu, respectivamente. Noutras palavras, sentido específico e sentido amplo. No sentido específico, apenas os gêneros textuais literários são considerados artísticos. Segundo a classificação feita pelo linguista Mikhail Bakhtin, são gêneros textuais as diversas formas consagradas pelo uso da fala/escrita: diálogo cotidiano, notícia, bula de remédio, receita, artigo, biografia, crônica, conto, novela, romance, poema e muitos outros. Dos citados, os que possuem literariedade são o romance, o conto, a novela, a fábula, o poema, a crônica. (A crônica está na linha que separa o literário e o não-literário.) No sentido amplo, tudo o que se produz linguisticamente é arte, inclusive o termo literatura possui a mesma amplitude dada a arte de escrever. Significa o emprego estético da linguagem, na produção dos gêneros literários; e significa mais amplamente toda a produção de obras científicas, filosóficas etc. sobre determinada matéria ou questão. Ao considerarmos a dicotomia proposta pelo filósofo francês Clèment Rosset, de que o mundo é constituído por natureza e artifício, respectivamente, tudo o que existe mesmo sem a presença do homem e tudo o que foi acrescido pelo homem, a escrita é artifício, é arte. A maior das revoluções cognitivas do homo sapiens é demarcada no tempo com o surgimento dos primeiros trabalhos de pintura (que é uma forma de linguagem) e muito possivelmente com o desenvolvimento da língua articulada. Não bastassem esses argumentos, podemos citar a metáfora, que caracteriza a poesia, por excelência, mas ganha em amplitude também. Quando falamos ou escrevemos a palavra “mesa”, fazemos referência a um objeto (de pedra, de madeira, de ferro ou de plástico) que usamos em nossas casas. A palavra “mesa”, no entanto, não é o objeto, mas uma representação dele, uma metáfora originária. Essa digressão é necessária para nos orientarmos no seguinte ponto: a partir da língua posta no mundo, abordaremos a arte como uma de suas possibilidades. Isto é, no âmbito restrito de seu significado. Aristóteles afirma em sua obra epifânica ARTE POÉTICA que a tendência à criação literária é uma manifestação natural, sua essência consiste na imitação (mimesis) e no prazer que daí deriva. Ao contrário de Aristóteles, Platão excluiu os poetas de sua república ideal, na medida em que eles são imitadores de algo que está a três degraus do real, ou em suas palavras, os poetas fazem “simulacros com simulacros”. Para Platão, o mundo sensível (segundo degrau) é uma ilusão, uma representação imperfeita do mundo inteligível, das ideias. Aristóteles detona com essa concepção metafísica da realidade ao dizer que primeiro existem as coisas e depois as ideias das coisas. E disse mais, que nos interessa aqui, que sob as aparências exteriores, a arte descobre a essência interna das coisas. Arte poética, esse pequeno grande livro de Aristóteles, encima a lista de obras indispensáveis para a aquisição de uma cultura erudita da arte de escrever. Outro filósofo que se ocupou com a arte da escrita foi Arthur Schopenhauer. Esse pensador é debochado, pessimista. Seu livro A ARTE DE ESCREVER é pouco técnico e muito crítico, subjetivo, sarcástico, disserta com sua linguagem corrosiva contra tudo e contra todos. Já no primeiro capítulo, Sobre a erudição e os eruditos, detona com professores e alunos. Não o recomendo. O melhor manual sobre a arte que tratamos aqui foi produzido por ANTOINE ALBALAT (jornalista, poeta, ensaísta e crítico literário francês, que viveu entre 1856 e 1935). O título de seu livro é A ARTE DE ESCREVER ENSINADA EM 20 LIÇÕES. Ao contrário de Schopenhauer, Albalat é objetivo, muito técnico, indispensável. O que Albalat nos diz sobre o estilo? “Escrever bem é pensar bem e reproduzir bem, tudo ao mesmo tempo... O estilo é a arte de aprender o valor das palavras e as relações das palavras entre si... O talento não consiste em nos servirmos secamente das palavras, mas em descobrir as imagens, as sensações e os cambiantes que resultam das suas combinações... O ESTILO É, POIS, UMA CRIAÇÃO DE FORMA PELAS IDEIAS E UMA CRIAÇÃO DE IDEIAS PELA FORMA.” Uma observação importante: O manual auxilia, não é fundamental. Ele não transforma ninguém da noite para o dia num escritor, num artista da palavra. Aristóteles diz algo interessante em sua Poética: “Homero pinta o homem melhor do que é”. Não apenas o homem, mas as outras criaturas (reais ou míticas). Pensem na beleza dos deuses gregos! Pensem em Helena, a mulher mais bela da humanidade, que rivalizava com Afrodite (a deusa da beleza), todas elas criação de um poeta. Já falei e escrevi algo como O POETA VÊ O QUE NÃO É PERCEBIDO pelos outros. Não só o vê, mas o expressa com palavras. Coerente com o que diz Aristóteles, o poeta torna a realidade mais visível, ou “porque a vida não basta”, como disse Ferreira Gullar acerca da função da arte. NIETZSCHE é um pouco mais radical: “Temos a arte para não morrer ou enlouquecer perante a verdade”. (AMO O QUE SE ESCREVE COM O PRÓPRIO SANGUE) Para Carlos Drummond de Andrade: “Escritor: não somente uma certa maneira especial de ver as coisas, senão também uma impossibilidade de as ver de qualquer outra maneira”. Outro dito interessante é de Jean-Paul Sartre: “Ninguém é escritor por haver decidido dizer certas coisas, mas por haver decidido dizê-las de determinado modo” Isso que Sartre nos diz equivale ao que Antoine Albalat coloca na Quarta Lição: o ESTILO – o cunho pessoal, a originalidade. Uma frase de Jean Cocteau, que li em minha juventude, não me saiu da cabeça: “ESCREVER É MATAR ALGO INERENTE À PRÓPRIA MORTE”. Não sabia, naquela época, que a escrita viria a ser minha forma mais nobre de salvação. Vocês sabem quem foi WILLIAM FAULKNER? Escritor estadunidense, um dos maiores romancistas do século XX. Esse dado não copiei do sistema de busca do Google, mas da leitura de dez livros de Faulkner: Enquanto agonizo; Uma fábula; Palmeiras selvagens; Luz em agosto; Absalão, Absalão!; Os invencidos; Santuário; Desça, Moisés; Primeiro de maio; e O SOM E A FÚRIA. O som e a fúria coloco entre os dez melhores romances que li em toda minha vida de leitor. Pois bem, Faulkner disse numa entrevista que o escritor se abastece em três fontes imensuráveis: a OBSERVAÇÃO, a EXPERIÊNCIA e a IMAGINAÇÃO. Peço que cada um de vocês, como escritores, olhem para dentro de si e destaquem qual a sua fonte mais generosa e qual a menos generosa. Não tenho problema para dizer que bebo muito na observação e na experiência e pouco na imaginação. A propósito, Faulkner é a prova que justifica o porquê não recomendo A ARTE DE ESCREVER de Schopenhauer. No terceiro capítulo do livro, SOBRE A ESCRITA E O ESTILO, Schopenhauer escreve: “Antes de tudo, há dois tipos de escritores: aqueles que escrevem em função do assunto e os que escrevem por escrever. Os primeiros tiveram pensamentos, ou fizeram experiências, que lhes parecem dignos de ser comunicados; os outros precisam de dinheiro e por isso escrevem, só por dinheiro”. Com a palavra, Faulkner: “Até o sucesso de Santuário eu vinha pintando paredes e fazendo serviços de carpintaria, mas num certo momento senti que poderia ter lucro escrevendo”. PARA FALARMOS DA ARTE DE ESCREVER, é inevitável que falemos primeiro sobre a leitura. JORGE LUIS BORGES, o grande escritor argentino, era humilde para confessar no poema UN LECTOR: “Que otros se jacten de las páginas que han escrito; a mí me enorgullecen las que he leído” Sempre respondo que o mais nobre benefício da leitura é a necessidade de escrever. A leitura também amplia significativamente nosso universo lexical, ensina ortografia, construção de frases, ritmos, imagens, gêneros... e tudo o que é indispensável para atender à necessidade da escrita. Há uns dez anos, dando aula particular, orientei meu aluno a fazer uma redação. No primeiro dia, pedi que ele escrevesse um texto sobre exoplaneta. Poderia ter pedido para escrever sobre a monocultura da soja, mobilidade urbana, outros assuntos mais conhecidos. Sem o auxílio do Google na hora, ele não conseguiu produzir um parágrafo minimamente aceitável. Não escrevemos sobre o que não conhecemos, muito menos se não temos a imaginação como fonte imensurável (como bem entendia Faulkner). Nesse sentido, BUFFON (citado por Albalat) disse: “OS NOSSOS CONHECIMENTOS SÃO OS GERMES DAS NOSSAS PRODUÇÕES” Escolhi três revistas que traziam matéria sobre exoplanetas e emprestei ao meu aluno. Pedi-lhe que lesse as matérias, e produzisse uma redação, com três parágrafos, respectivamente, INTRODUÇÃO, DESENVOLVIMENTO e CONCLUSÃO. Essas leituras o ajudaram a escrever sobre o tema solicitado. LEITURAS À semelhança de Borges, me orgulho das leituras que fiz, que faço e que farei até quando permitir a saúde dos olhos, da cabeça, dos nervos... Comecei a ler na biblioteca do então Colégio Polivalente, no ano de 1973, portanto, há 49 anos. A longevidade conta não apenas para a quantidade, como para a qualidade da leitura. Hoje leio menos, porque escrevo mais. Minha biblioteca ideal, todavia, continua a incluir livros e livros. A relação desse acervo encontra-se publicada desde 2007. Alguns títulos/autores: FICÇÃO: - A cabana do Pai Thomás, Harriet Stowe; - Admirável mundo novo, Aldous Huxley; - A insustentável leveza do ser, Milan Kundera; - Alice no País das Maravilhas, Lewis Carrol; - A paixão segundo G. H., Clarice Lispector; - Cem anos de solidão, García Márquez; - Dom Quixote, Miguel de Cervantes; - Em busca do tempo perdido, Marcel Proust; - Ficções, J.L. Borges; - Grande sertão: veredas, João Guimarães Rosa; - Madame Bovary, Gustave Flaubert; - Maíra, Darcy Ribeiro; - Memórias póstumas de Brás Cubas, Machado de Assis; - O evangelho segundo Jesus Cristo, José Saramago; - O lobo da estepe, Hermann Hesse; - O mundo de Sofia, Jostein Gaarder; - O processe, F. Kafka; - Orlando, Virgínia Woolf; - Os irmãos Karámazov, F. Dostoievski; - Os rios profundos, José Maria Arguedas; - O tempo e o vento, Erico Veríssimo; - O velho e o mar, E. Hemingway; - Quarup, Antônio Callado; - Robinson Crusué, Daniel Defoe; - Terra sonâmbula, Mia Couto; - Torto arado, Itamar Vieira Junior; - Todos os fogos o fogo, Julio Cortázar; - Ulisses, James Joyce; - Vidas secas, Graciliano Ramos... POESIA: - Olavo Bilac, Augusto dos Anjos, Manuel Bandeira, Mario Quintana, Pablo Neruda, Fernando Pessoa, Carlos Drummond de Andrade, Rainer-Maria Rilke, Baudelaire, Ezra Pound, Dante, Whitman, João Cabral de Melo Neto, Carlos Nejar, Manoel de Barros, Luís de Camões, Vinícius de Moraes, Paulo Leminski... FILOSOFIA, HISTÓRIA, PSICOLOGIA, SOCIOLOGIA, ANTROPOLOGIA, BIOLOGIA, ASTRONOMIA... - A arte da vida, Zygmunt Bauman; - A criação do mundo, George Gamov; - A essência do Cristianismo, Ludwig Feuerbach; - A morte da fé, Sam Harris; - A mutação interior, J. Krishnamurti; - A necessidade da arte, Ernst Fischer; - A origem das espécies, Charles Darwin; - A realidade não é o que parece, Carlo Rovelli; - A rebelião das massas, José Ortega y Gasset; - Armas, germes e aço, Jared Diamond; - As eras de Gaia, James Lovelock; - Assim falou Zaratustra, F. Nietzsche; - Conferências e escritos filosóficos, M. Heidegger; - Cosmos, Carl Sagan; - Dicionário filosófico, Voltaire; - Édipo: mito e complexo, Patrick Mullahy; - Ensaios, M. Montaigne; - O futuro de uma ilusão e O mal-estar na cultura, S. Freud; - O gene egoísta, Richard Dawkins; - O homem-deus, Luc Ferry; - O macaco nu, Desmond Morris; - O novo iluminismo, Steven Pinker - O ópio dos intelectuais, Raymond Aron; - Os sumérios, S.N. Kramer; - Por que não sou cristão, Bertrand Russel; - Psicanálise da sociedade contemporânea, Erich Fromm; - Quebrando o encanto, Daniel Dennett; - Sapiens: uma breve história da humanidade, Yuval Noah Harari; - Uma breve história do tempo, Stephen Hawking... Na relação acima, mais importante que o título é o nome do autor. Ao citar, por exemplo, ASSIM FALOU ZARATUSTRA, cito Nietzsche. Todos os seus livros são relevantes. Não apenas os seus livros, mas também os que foram escritos por outros autores sobre os livros de Nietzsche, sobre a filosofia nietzschiana. ESCRITOS Iniciei minha carreira de leitor em 1973 e de escritor (resultados das múltiplas leituras) no fim dos anos oitenta. A publicação do primeiro livro, todavia, só aconteceu em 2006. Dezessete anos de leitura, dezessete anos a escrever até Ponteiros de palavras. Depois vieram Vozes e vertentes (2010), O fogo das palavras (2011), Margens impossíveis (2013), Palavras de fogo (2014), Considerações neoateístas (2016) e Claro&profundo (2019). Tudo o que escrevi e publiquei até o presente considero meros ensaios poéticos e filosóficos para produções futuras. Na abordagem do tema em pauta, a arte de escrever, é mais relevante falar-lhes do COMO escrevo. Não O QUÊ ou O PORQUÊ (já mencionado anteriormente). COMO? Eis a questão... Respondo com uma frase de MÁRIO QUINTANA, que ele intitula DA DIFÍCIL FACILIDADE: “É PRECISO ESCREVER UM POEMA VÁRIAS VEZES PARA QUE DÊ A IMPRESSÃO DE QUE FOI ESCRITO PELA PRIMEIRA VEZ” Não paro de reescrever meus poemas e meus microensaios e aforismos. Ultimamente, preparo um livro de haicai, forma fixa de poema com três versos. Atravesso a madrugada para escrever um único haicai. Ao sacrificar o sono, que vem e se vai, escrevo com o próprio sangue, como era digno de amor a Zaratustra. MUITO OBRIGADO!

quarta-feira, 23 de março de 2022

O VENDEDOR DE LIVROS (CRÔNICA DE CURITIBA)

 

   O homem vende livros na Feira do Largo da Ordem, que acontece todos os domingos em Curitiba. Seu espaço fica a poucos metros do bebedouro (onde os tropeiros davam água aos cavalos e mulas desde meados do século XVIII).

           Diferentemente de outros feirantes, o livreiro não dispõe de uma barraca armada: vende ao sol. Mesmo assim, ele é bem-humorado, a divertir seus clientes com algumas tiradas.

           Todas as vezes que vou à feira, dedico um tempo maior a conversar com o homem.

Dois chistes de sua chancela transcrevo abaixo:

           A mulher dá uma olhada para tantos volumes e pergunta como eles estão organizados nas caixas de madeira. A resposta é categórica: “Os livros estão organizados de uma forma rigorosamente aleatória”.

           Domingo último, ao passear pelo Largo da Ordem, mais uma vez me detive em frente ao amigo vendedor de livros. A chuva era iminente, por isso me preocupei com o acervo exposto. Com um sorriso de tranquilidade, o homem apontou para uma lona enrolada:

           “Tenho aqui o preservativo cultural.”

           Infelizmente, a garoa caiu mais grossa, e o homem teve que desenrolar o “preservativo cultural” e estendê-lo sobre os livros arrumados de uma forma “rigorosamente aleatória”.

domingo, 6 de março de 2022

NÃO EMPODERAMENTO

 

        Em 2020, escrevi o artigo Rede social Facebook: o não empoderamento do sujeito do enunciado, como avaliação no curso de Filosofia (FAE Centro Universitário, Curitiba). No momento em que a mídia social possibilita a um grande número de usuários criar uma página e se inserir no que pode ser considerado letramento digital, ousei questionar diversos estudos acadêmicos que apontam certo empoderamento pessoal.

       Para tanto, desenvolvi meu argumento baseado em três referências: Mikhail Bakhtin, Platão e Sigmund Freud. Da análise do gênero discursivo recorrente, do conteúdo opinativo e narcisista da enunciação, sustentei que o sujeito que a elabora não se efetiva como interlocutor dialógico, não contribui para a verdade e tampouco cumpre um papel de relevância intersubjetiva. Ademais, há de se considerar o poder de manipulação do Facebook, recentemente denunciado por ex-colaboradores da startap.

       A partir de Bakhtin, esclareci o que seja o enunciado dentro do processo comunicativo. O sujeito é quem fala ou escreve para um ouvinte ou leitor que dialoga com ele. Esse segundo componente da relação dialogal, por sua vez, ocupa “uma ativa posição responsiva: concorda ou discorda” do primeiro, com o qual alterna o papel de enunciador. O enunciado é tudo o que produzido durante a comunicação oral ou escrita. O linguista e filósofo russo classificou os gêneros discursivos de primários (conversa, bilhete, e-mail etc.) e secundários (crônica, conto, artigo etc.).

       Da réplica do diálogo cotidiano ao comentário mais longo em que se expressam ideias, apreciações e juízos de valor, a opinião constitui a maioria dos enunciados no Facebook. Na linha segmentada proposta por Platão, a opinião consiste numa forma primária de conhecimento, fundamentado em ilusões, crenças e preconceitos. Nesse aspecto o filósofo rende tributo a Parmênides, pré-socrático que opunha a opinião à verdade.

       Em vista de sua subjetividade, de seu caráter íntimo, a opinião visa a dar evidência ao sujeito que a enuncia. A imagem de si mesmo, na percepção desse sujeito, merece o compartilhamento com o outro, independentemente da concessão dialogal. Pari passu com outras semioses (a exemplo do selfie), a enunciação é motivada pelo narcisismo, ou a necessidade de investimento no Eu, segundo Freud. No âmbito hi-tech, o Facebook representa o lago que reflete a própria face piegas do sujeito enunciador. Antes de comunicar algo, de exercer uma função social, todo enunciado, acompanhado de imagem ou não, presta-se à afirmação de uma identidade narcísica.

       Em síntese, não há empoderamento no emprego de gêneros primários (como a conversa cotidiana), não há na opinião e na expressão narcisista. Para se tornar empoderado, o usuário deve produzir uma forma de gênero digital que influencie seu interlocutor, que se aprofunde na busca da verdade e que se caracterize pela alteridade. Não há empoderamento sem considerar a relação com o outro.

quinta-feira, 3 de março de 2022

DRAMA PESSOAL

 

        Hoje levantei com a ideia de pintar meu autorretrato com vitiligo. Pictoricamente, estas manchas mais claras na testa, acima da sobrancelha e no extremo direito da boca darão ao quadro um aspecto interessante.

       Outra ideia me ocorreu nesta manhã: iniciar a escrita de um romance. Depois que li Terra sonâmbula (Mia Couto) e Torto arado (Itamar Vieira Júnior), essa ideia se renova com frequência (sempre vencida pela autocrítica).

       Qual é a autocrítica?

       Por um lado, reconheço que não estou preparado para tão grande empreendimento criativo, que me exigiria muito suor, muita queima de neurônio. Por outro, penso que o compromisso com a realidade é mais urgente. O mundo não anda bem, a necessitar do meu engajamento filosófico.

       Platão poderia estar certo em deixar os poetas fora de sua república, porque eles perpetuam a ilusão, o estado sensível do fundo da caverna. Para sair à luz, o homem o faz por intermédio da razão, do conhecimento.

       Assim dividido, adianto que não pintarei meu autorretrato, tampouco iniciarei um romance. A arte fica para depois, não obstante a perspectiva de que depois será tarde.  

        

terça-feira, 1 de março de 2022

"GIGANTES DE RAZÃO CIENTÍFICA"

                      Muito antes de ler Charles Taylor, filósofo canadense, eu já chegara aos três grandes nomes da modernidade, que libertaram o homem ocidental do delírio religioso: Copérnico, Darwin e Freud. Tal libertação, ainda incompleta, não ocorre sem grandes frustrações.

         O primeiro nome é Nicolau Copérnico, monge polonês, que descobriu matematicamente que era a Terra que girava em torno do Sol, e não o contrário (como sustentava todo o saber anterior). Sua descoberta gerou um grande mal-estar em pleno apogeu do Cristianismo, quando a Terra estava no centro do mundo, com o Deus sobre ela, sentado num “sólio de nuvens” (no dizer de Will Durant). Com estudos posteriores, nosso planeta foi perdendo cada vez a centralidade, reduzindo-se a um grão de poeira na imensidão do espaço-tempo. Copérnico receoso de que seu estudo causaria uma indignação muito grande, com consequências terríveis para ele, publicou-o um pouco antes de morrer em 1543. Giordano Bruno, que defendeu mais tarde o heliocentrismo, foi condenado e executado pela santa igreja de Roma.

         O segundo nome e (reputo) o mais importante é Charles Darwin. Outro que tardou para publicar seu A origem das espécies (1959), um escândalo para a Era Vitoriana, de fundamentalismo moral e religioso. A frustração causada por Copérnico foi superada com a crença de que o homem era ainda uma criatura divina, diferente dos outros animais. Darwin explica minuciosamente como ocorreu a evolução das espécies, como homem e chimpanzé pertenciam a uma mesma espécie entre seis e sete milhões de anos antes do presente. O criacionismo, tido como verdade absoluta, passa a ser relegado pela ciência como um outro mito qualquer.

         Sigmund Freud é o terceiro nome citado por Taylor como um dos “gigantes da razão científica”. Com a frustração propiciada pelo darwinismo, abandonou-se a crença no mito adâmico e se agarrou à racionalidade, uma centelha de luz a distinguir o homem. Todavia, surge Freud, que citara Copérnico e Darwin no ensaio Uma dificuldade da psicanálise como responsáveis por causar grandes aborrecimentos à humanidade, com a sua descoberta do inconsciente. O terceiro aborrecimento (frustração da razão que se pressupunha a essência humana). O consciente é a ponta emersa do iceberg, tudo mais é instinto, pulsão, inconsciente.

          A reação criacionista foi violenta no começo da modernidade, com a inquisição, negacionista ao longo dos últimos séculos e adaptável nos dias atuais. Como adaptável? No discurso do Papa Francisco, por exemplo, ao afirmar que o big bang é perfeitamente compatível com a criação divina do mundo. A adaptação é o último esperneio do mito, que se mantém vivo pela fé depositada nele.     

A SALVAÇÃO PELO AMOR

 

    Luc Ferry é um filósofo francês contemporâneo, autor de livros extraordinários, como O que é uma vida bem-sucedida, Aprender a viver, A nova ordem ecológica, A revolução do amor, O homem-Deus, A mais bela história da filosofia, entre outros. Malgrado os títulos acima, nada de autoajuda do tipo senso comum.

         Hoje destaco as cinco grandes respostas filosóficas para uma vida boa, que Ferry disserta em seu A mais bela história da filosofia. Essas cinco respostas foram dadas pela filosofia ao longo de sua trajetória no Ocidente, nos últimos três milênios.

         A primeira resposta surge na Antiguidade, “como pano de fundo dos relatos mitológicos”, retomada mais tarde pelos filósofos clássicos gregos. A ideia central dessa resposta se depreende da concepção de que o mundo expressa uma ordem harmoniosa, o cosmos. “Uma vida boa”, escreve Ferry, “consiste em adequar-se à ordem do mundo”. Ainda hoje, movimentos holísticos voltam a ensinar uma prática que harmonize mente-corpo com a ordem do Universo.

         A segunda resposta, na verdade, é apresentada pela religião cristã, que substituiu a filosofia em franca decadência. Se a filosofia grega remetia a “uma imortalidade muito parcial”, em que o indivíduo se dissolvia na ordem cósmica, o cristianismo propõe a ideia de salvação pessoal, de ressurreição do indivíduo para uma vida eterna e paradisíaca. 

         A terceira resposta é dada a partir do Renascimento, com sua virada homocêntrica. Ela não mais se fundamenta no cosmos ou na divindade supraterrena, mas na razão. Segundo Ferry, com o humanismo a filosofia permite o surgimento de dois traços que passam a caracterizar a vida boa: a valorização do conhecimento, a cultura, a civilidade; e a justificação da vida por um exemplo, por uma contribuição à História, por uma obra, por algo que permaneça na lembrança dos pósteros.

         A quarta resposta resulta de um fracasso da razão iluminista em dar um sentido à vida. Ela é instaurada pelos filósofos da desconstrução, que passaram a considerar “as dimensões da existência até então esquecidas, sufocadas ou reprimidas, como o inconsciente ou a animalidade”. Entre esses pensadores, despontam Nietzsche, Heidegger e Derrida. Para o filósofo do martelo, “todo ideal nega a vida”, de Platão à modernidade, constitui o que ele denominou de niilismo. Sua proposta expressa no pensamento do eterno retorno é de afirmação da vida.

         A quinta resposta vem depois das “conquistas da desconstrução” dos valores tradicionais (religiosos, morais, patrióticos), época que Ferry designa como “humanismo do amor”.   O amor possibilita uma experiência que dá um sentido à vida, com maior alcance ao sair de nós mesmos. Amar e ser amado não é metafísica, sentimento vivenciado na terra, e não no céu.

         Ferry se declara um não nietzschiano, todavia, aproxima-se do pensamento do eterno retorno, que propõe a afirmação da vida, o amor fati como salvação na imanência. Como filósofo da desconstrução, por excelência, Nietzsche via no niilismo uma catástrofe para nossa civilização, difícil de ser superada. Ferry é bem otimista em relação à superação – pelo amor.

 

REFERÊNCIA

FERRY, Luc. A mais bela história da filosofia; tradução de Clóvis Marques. – 2ª ed. – Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2018. 

JAMES WEBB - O NOVO TELESCÓPIO

 

O telescópio espacial James Webb foi lançado no dia 25 de dezembro de 2021, para substituir Hubble, seu congênere anterior. A nova tecnologia foi desenvolvida pela NASA, Agência Espacial Europeia e Agência Espacial Canadense. Os objetivos principais de JW são captar a radiação infravermelha resultante do Universo muito jovem e observar a formação de galáxias e estrelas.

Para entender o primeiro objetivo é necessário aludir a Arno Penzias e Robert Wilson. Em 1965, esses dois cientistas descobriram uma radiação cósmica de fundo em micro-ondas, emitida pelo Universo em expansão acelerada logo após o Big Bang. Noutras palavras, essa radiação é resíduo ainda existente (e captável) da “grande explosão”, geradora de muita luz e calor. Por essa descoberta, Penzias e Wilson foram laureados com o Nobel de Física em 1978.

Para entender o segundo objetivo, a observação de estrelas e galáxias bebês, é necessário conhecimento prévio da relação entre espaço e tempo: quanto mais distante no espaço (o novo telescópio consegue alcançar), mais distante no tempo. A luz apresenta uma velocidade de 300.000 km/s. O Sol que observamos neste exato instante é o Sol de 8 minutos atrás. Sírius, a estrela mais brilhante do céu noturno (a olho nu), há 8,57 anos não se encontra mais lá onde é observada. O JW será capaz de fotografar estrelas e galáxias a bilhões de anos-luz, quando esses corpos celestes emergiam do caos primordial.

A Via Láctea, a galáxia em que habitamos, tem um diâmetro de 100.000 luz. O Sistema Solar se localiza a 27.000 anos-luz do centro galáctico, na borda de um dos braços espiralados (a faixa de estrelas que atravessa o céu em noites limpas). O Universo tem bilhões de galáxias, maiores e menores que a Via Láctea. O telescópio James Webb buscará as galáxias mais distantes (no espaço e no tempo).

"IMAGINAÇÃO DO DESASTRE"

 

                    O futuro chega a passos largos.

                  O que isso quer dizer? Noutras palavras, para que o mais ignorante entenda com uma clareza meridiana.

                  Presentemente, imagina-se um tempo em que as pessoas com dinheiro na mão não comprarão alimento nos supermercados, em razão de inexistir o alimento. Também aumentará o número de famélicos, que não terá dinheiro para comprar o alimento disponível.

                  Esse quadro não é exagero, embora se possa atribui-lo em parte à “imaginação do desastre” (expressão cunhada por Henry James há mais de um século).

                  Uma seca neste verão bastou para faltar verdura no comércio. Somente aqueles que se levantam cedo conseguem comprar esse alimento indispensável. Mudanças climáticas contundentes, provocadas por causas naturais ou humana, poderão trazer carestias mais prolongadas.

                   Não bastasse o fator climático desfavorável, temos o aumento populacional, cuja previsão crava 9,5 bilhões de indivíduos para 2050.

                   A frase acima (para concluir) faz muito sentido, a despeito de toda a esperança depositada na tecnologia em constante evolução.

                   Por favor, pensem nisso!