sexta-feira, 31 de julho de 2020

OS VIZINHOS: UMA ALEGORIA DE MIA COUTO


        O conto Os vizinhos, de Mia Couto, tem um enredo interessante, a servir de alegoria na descrição de um problema que se agrava em nossa sociedade, em (des)razão do individualismo radical e da dualidade ideológica (insuflada pela chamadas fake News).
         Na impossibilidade de transcrever o conto todo, publicado no livro Na berma de nenhuma estrada, cito o primeiro parágrafo:

As famílias se davam, cordiais, uma e sabugo. Não havia dia que não trocassem favores, emprestassem alegrias, esmiudaçassem conversa. Aquilo era como se não houvesse paredes. Ou que não tivessem ouvidos: digamos que uma família única distribuída em duas casas (p. 151)

        As duas famílias partilhavam do mesmo cão de guarda. Os filhos se namoriscavam, a trocarem bilhete no começo e travesseiro mais adiante.
         Tudo ia muito bem, “até que começaram as notícias”. A televisão insistia em conflitos étnicos, coisa que as famílias não sabiam muito bem. Todavia, “as notícias se adensaram como as nuvens de novembro”. Todos já sabiam o que significava étnico. Não bastassem os aspectos rácicos, com variantes religiosas, as notícias falavam em conflito.
         O noticiário acabava em discussão, o que justificou a não mais verem em comum a televisão.
         Um dia, o vizinho da esquerda bateu à porta do outro, a perguntar-lhe: “Desculpe, vizinho, mas você tem raça?”. O outro respondeu que sim. Não lhe disse que se tratava da outra raça, verdadeiramente pura, para evitar mal-entendido. Mesmo assim, complementou que em sua casa já comentavam sobre a etnia do outro.
        O terceiro passo foi o de as portas se fecharem uma para outra (como metáfora dos próprios corações).
         O narrador comenta que “ninguém lhes deu essa ordem de separação”. O noticiário os condicionava a ela. Os dois lados se perguntavam como foram amigos anteriormente. A religião de cada família era diferente.

A distância foi dando lugar ao ódio. E à convicção de que a culpa dos males mundiais residia ali ao lado. Desgraças passadas e futuras só tinham uma única e fácil explicação: os outros, ali à mão de serem condenados (p. 153)

         Até que um dos vizinhos resolveu matar o seu próximo. No escuro, com a arma na mão, prestes a atacar o outro, sofreu o ataque do cão. O vizinho que seria atacado se virou e, não reconhecendo a ação agressiva, achou interessante retomar uma conversa com o outro. Os dois gostaram do reencontro e combinaram alternar os passeios com o cão nas noites próximas.

quarta-feira, 29 de julho de 2020

MADRUGADA

Os galos já cantaram trinta vezes nesta madrugada. Eles cantam do alto de suas árvores, onde se protegem de predadores que subsistem na memória filogenética da espécie.
Nada me foi negado, exceto o sono. Pelo contrário, meu coração está a exigir um novo sim, uma nova afirmação da vida.
A ouvir o canto dos galos (ante a perspectiva do dia), penso que o melhor caminho é a estrada, onde amealho horizontes.

AS PESSOAS...


Caro leitor, você lê acima um tipo de enunciado que repercute muito nas redes sociais. Todavia, seu significado denuncia duas falácias e uma presunção. 
As falácias são de generalização: "quase ninguém é amigo de ninguém" e "as pessoas". A presunção: o sujeito enunciador é o único certo, ao se colocar aquém das pessoas que o  "tratam conforme o interesse delas". 
O pressuposto é que ele trata as demais pessoas da outra forma, conforme o interesse delas e não conforme seu próprio interesse.
O fato de existir amizade no mundo real não é uma exceção. como é expresso pelo modalizador discursivo "quase". É inegável que existe amizades e amizades.
Uma psicologia mais profunda verá por trás do discurso desse sujeito, o desejo individualista de terra arrasada, de catastrofismo intersubjetivo.

sexta-feira, 24 de julho de 2020

NIETZSCHE DISTORCIDO



       No livro Nietzsche para estressados, Allan Percy seleciona 99 sentenças do filósofo alemão e as transforma em autoajuda.
         Sem uma razão deliberada, rompi o plástico que protegia o volume (há alguns anos intacto) e o abri aleatoriamente para conhecer seu conteúdo. O primeiro excerto que leio no alto da página 24 é

As pessoas nos castigam por
nossas virtudes. Só perdoam
sinceramente nossos erros

         Não casualmente, um dos livros que releio nestes dias é Assim falou Zaratustra, em que a beleza e a sabedoria se encontram unificadas num texto sem comparação na história da filosofia. No discurso de Zaratustra, Das moscas do mercado, o sábio sugere a alguém com “ouvidos delicados” que se afaste do mercado, onde há o “barulho dos grandes atores e o zumbido das moscas venenosas”.
         A título de esclarecimento, os “ouvidos delicados” pertencem a alguém capaz de ouvir Zaratustra sobre a verdade de que o homem é algo a ser superado. Alguém propenso a ser um espírito livre. Os “grandes atores” são aqueles que falam para o povo, sacerdotes, pastores, políticos, filósofos, jornalistas... As “moscas” são os homens de rebanho, intolerantes à grandeza, ressentidos...
Salvo pequenas variantes de tradução (sem alterar o conteúdo), o excerto correto é

Eles te castigam por todas
as virtudes. Perdoam-te
sinceramente apenas – os erros

A distorção feita pelo autor de Nietzsche para estressados é considerável, a tomar em consideração as pessoas envolvidas no discurso. Há a substituição de “eles” (homens de rebanho) por “as pessoas”. Quem são essas pessoas? Mais grave ainda é a troca de alguém possuidor de uma qualidade que o distingue do povo (para quem se dirige Zaratustra), por “nós”. Quem são esses tomados pelo pronome nós (diferentes das pessoas que castigam)?
Esse “nós” do autor também comporta as pessoas acusadas de não tolerarem a virtude nos outros. Zaratustra diria que todas as pessoas envolvidas no excerto distorcido por Percy são eles, homens de rebanho, moscas do mercado. O próprio autor, que é coach, constituir-se-ia num barulhento grande ator, a representar para os leitores.

quinta-feira, 23 de julho de 2020

TARDÍGRADO NO SOL?



            O Canal TILT do UOL, a versar sobre tecnologia, não é sério com a publicação da matéria: “Mancha achada no meio do Sol poderia ou não ser um tardígrado?”.
         A astronomia é uma ciência que evolui atrás de hipóteses cada vez mais difíceis de serem comprovadas (principalmente ao tratar de outras galáxias). No caso acima descrito, a pergunta beira o ridículo.
         Em primeiro lugar, não é no “meio do Sol”, a significar um determinado ponto de sua superfície. Não se diz de qualquer objeto na Terra, visto do espaço, que ele está no meio da Terra. Em segundo, mesmo que você (leitor) seja leigo no assunto, começa a leitura (pelo título mal formulado), a esperar uma análise da ESA (Agência Espacial Europeia) ou da NASA, não de internautas bobalhões.
         Após as imagens divulgadas do Sol por essas agências, a mais importante observação desses “especialistas” de plantão foi comparar uma das manchas solares com um tardígrado, e se esse micro-organismo (0,5mm de comprimento) poderia sobreviver no Sol.
         Uma das características conhecidas do tardígrado é sua adaptação à alta temperatura, certamente não superior à da água fervente. A ebulição desse líquido ocorre a 100ºC ao nível do mar, todavia a temperatura da fotosfera solar é de aproximadamente 6.000ºC. Um pouco mais da metade dessa temperatura é suficiente para fundir os metais mais resistentes.
         Essa matéria do UOL é só mais um exemplo do que é publicado amiúde nos sites com maior acesso no mundo virtual. A sanha sensacionalista (para vender) não tem limite, a atender a demanda sem limite da ignorância.
        

quarta-feira, 15 de julho de 2020

sexta-feira, 10 de julho de 2020

JÚLIA E O MONSTRO


        Os contos de fada narravam a violência entre bichos e humanos, entre humanos e seres imaginários. Entre o mau e o bom, entre o bem e o mal. Por uma injunção moral, fazia-se justiça, e a história tinha um final feliz.
        Noutras palavras, tem razão o personagem do romance O gênio e a deusa, de Aldous Huxley:
        – O mal da ficção – disse John Rivers – é que ela faz sentido demais. A realidade nunca faz sentido.
        A realidade não faz sentido, prossigo por minha conta, em vista de sua injustiça contra a vida.
        Júlia Rosenberg era uma jovem linda, inocente, estudante de veterinária (profissão que requer atenção especial aos bichos não humanos), que caminhava numa trilha entre as praias Paúba e Maresia, no litoral de São Paulo.
         Todavia, à espreita de Júlia, havia um homem com aparência normal. Não era um animal, não era uma criatura teratológica, não era um demônio, mas apenas um homem.
Um homem apenas, que a ficção jamais soube descrevê-lo em sua crueldade. Um monstro, que nem a barbárie foi capaz de produzir, mas uma civilização à beira da loucura.

terça-feira, 7 de julho de 2020

ZECHARIA SITCHIN: O DISPARATADO 12º PLANETA


       No primeiro parágrafo de o 12º Planeta, de Zecharia Sitchin, lê-se:

De todas as provas que acumulamos para apoiar nossas conclusões, a primeira a ser exibida é o próprio homem. De vários modos, o homem moderno, o Homo sapiens, é um estranho à Terra (p. 15).

       Primeiramente, o autor começa a defender suas conclusões (que o leitor não sabe quais são), a citar aquela que seria a prova fundamental: o homem contemporâneo é um estranho à Terra.
       No Prólogo, ele afirmara que os Nefilim, habitantes de um planeta invasor ao Sistema Solar, “criaram o homem na Terra”.
       O parágrafo acima, todavia, servir-me-á para destacar a prova do primeiro disparate (segundo Houaiss (2009), “dito ou ação ilógica, absurda, ou fora da realidade, contrassenso, despautério”).
        Primeiro disparate: o homem contemporâneo é um estranho à Terra. Por que é um disparate? A evolução da vida no planeta é um fato, uma verdade comprovada pela ciência. Por volta de sete milhões de anos, uma pequena variação genética dividiu uma espécie ancestral em duas: chimpanzé e homem. Não o homem como o conhecemos no presente, senão uma criatura do mesmo gênero.
       A genética entre chimpanzé e homem é semelhante em 99%, o que causa um problema sério à tese de Sitchin. Por que o homem teria vindo de outro planeta, e o chimpanzé não? Na hipótese da variação genética entre os dois ser administrada pelos Nefilim, por que as variações entre as outras espécies ocorreriam por fatores aleatórios?
       A referência do chimpanzé leva em conta a maior proximidade, mas a semelhança continua em grau cada vez menor dentro da ordem dos primatas. Na sequência, também os gorilas, os orangotangos, os gibões, os macacos do velho mundo, ab origine.
       No terceiro parágrafo, Sitchin pergunta

Se tudo começou através de uma série de reações químicas espontâneas, por que é que a vida na Terra tem uma única fonte e não uma multitude de fontes causais? E por que é que toda a matéria viva na Terra contém tão poucos dos elementos químicos que abundam na Terra e tantos daqueles que são raros em nosso planeta?

       Quem se encanta a priori com a hipótese estapafúrdia de Sitchin e ignora completamente a evolução biológica não se dará conta desse segundo disparate.
       O dizer que a vida na Terra tem “uma única fonte” causal é falacioso, na medida em que há uma multitude de fontes. O argumento de que a matéria viva contém tão poucos elementos químicos que abundam na Terra é uma inverdade, impossível de ser minimizada como falácia.
       O corpo humano, por exemplo, compõe-se quase inteiramente dos elementos que mais abundam no planeta: Oxigênio, Carbono, Hidrogênio e Nitrogênio. Em menor proporção, incluem-se Sódio, Fósforo, Cálcio, entre outros. Quais os elementos raros?  
       Ao virar a página, lê-se

Depois, súbita e inexplicavelmente, há 35.000 anos, uma nova raça de homens – Homo sapiens (“o homem pensante”) – apareceu como que vinda do nada e varreu o Homem de Neanderthal da face da Terra.

       O terceiro disparate é a expressão “súbita e inexplicavelmente”, somada à datação de 35.000 anos antes do presente. Não somo aqui o desaparecimento do neanderthal, ainda não provado inteiramente.
       Aparição súbita do homo sapiens? Segundo DIAMOND (2010), a última espécie do gênero homo surgiu há 500 mil anos na África, de onde saiu entre 100 e 70 mil anos, para dominar o planeta. Inexplicavelmente? O Homo sapiens vindo do nada? Eles avançavam há mais de 30 mil anos, desde que, saindo da mãe-África, tomaram os continentes a leste, norte e oeste. O encontro com o neanderthal era previsto, explicável. O longo caminho da África à Europa não pode ser simplificado como nada.
       No capítulo 12, todavia, Sitchin escreve:

O homem é o produto da evolução; mas o homem moderno, Homo sapiens, é o produto dos “deuses”, uma vez que, em algum lugar há cerca de 300.000 anos, os Nefilim tomaram um homem-macaco (Homo erectus) e implantaram nele sua própria imagem e semelhança (p. 312).

       O Homo sapiens é resultado de uma mutação provocada pelos Nefilim. Sem dúvida, esse é o maior disparate do livro todo. O homem é produto da evolução, mas o homo sapiens não. Se os Nefilim criaram a espécie há 300 mil anos, malgrado terem aterrissado há 450 mil, por que o homo sapiens viria do nada há 35 mil anos (conforme citação acima)? Afinal, Sitchin vê ou não vê diferença entre o homo sapiens e o homem moderno?
       Quem são os Nefilim? De que planeta eles são naturais? Os alienígenas seriam criaturas muitíssimo inteligentes, oriundos do planeta Marduk, que teria uma órbita absurdamente excêntrica, completada em torno do Sol a cada 3600 anos. Esse planeta, diga-se de passagem, nunca foi observado pelos potentes telescópicos (capazes de detectar estruturas celestes a 12 bilhões de anos-luz).  
       Os disparates são às centenas, a exigir um trabalho extenso para destacá-los criticamente. Mesmo assim, Sitchin conta com adeptos espalhados pelo mundo todo (tão convencidos quantos os terraplanistas).

REFERÊNCIAS
DIAMOND, Jared. O terceiro chimpanzé; tradução Maria Cristina Torquilho Cavalcanti. – Rio de Janeiro: Record, 2010, p. 46.

HOUAISS. Dicionário da Língua Portuguesa.
SITCHIN, Zecharia. O 12º Planeta; tradução de Ana Paula Cunha. São Paulo: Editora Best Seller, 1978.