sábado, 25 de junho de 2022

A ARTE DE ESCREVER

Com o fim de introduzir o tema a ser abordado por nós, sugiro-lhes uma digressão para aclarar o significado da frase “a arte de escrever”. O que vem ao nosso pensamento, no instante em que falamos ou ouvimos, escrevemos ou lemos “a arte de escrever”? Que significado damos a essa associação de fonemas ou de signos gráficos? Há duas interpretações em razão da amplitude, ou extensão semântica: na primeira delas entendemos que a escrita possibilita uma arte, como a poesia; na segunda interpretação, que a escrita por si só é uma arte. Stricto sensu e lato sensu, respectivamente. Noutras palavras, sentido específico e sentido amplo. No sentido específico, apenas os gêneros textuais literários são considerados artísticos. Segundo a classificação feita pelo linguista Mikhail Bakhtin, são gêneros textuais as diversas formas consagradas pelo uso da fala/escrita: diálogo cotidiano, notícia, bula de remédio, receita, artigo, biografia, crônica, conto, novela, romance, poema e muitos outros. Dos citados, os que possuem literariedade são o romance, o conto, a novela, a fábula, o poema, a crônica. (A crônica está na linha que separa o literário e o não-literário.) No sentido amplo, tudo o que se produz linguisticamente é arte, inclusive o termo literatura possui a mesma amplitude dada a arte de escrever. Significa o emprego estético da linguagem, na produção dos gêneros literários; e significa mais amplamente toda a produção de obras científicas, filosóficas etc. sobre determinada matéria ou questão. Ao considerarmos a dicotomia proposta pelo filósofo francês Clèment Rosset, de que o mundo é constituído por natureza e artifício, respectivamente, tudo o que existe mesmo sem a presença do homem e tudo o que foi acrescido pelo homem, a escrita é artifício, é arte. A maior das revoluções cognitivas do homo sapiens é demarcada no tempo com o surgimento dos primeiros trabalhos de pintura (que é uma forma de linguagem) e muito possivelmente com o desenvolvimento da língua articulada. Não bastassem esses argumentos, podemos citar a metáfora, que caracteriza a poesia, por excelência, mas ganha em amplitude também. Quando falamos ou escrevemos a palavra “mesa”, fazemos referência a um objeto (de pedra, de madeira, de ferro ou de plástico) que usamos em nossas casas. A palavra “mesa”, no entanto, não é o objeto, mas uma representação dele, uma metáfora originária. Essa digressão é necessária para nos orientarmos no seguinte ponto: a partir da língua posta no mundo, abordaremos a arte como uma de suas possibilidades. Isto é, no âmbito restrito de seu significado. Aristóteles afirma em sua obra epifânica ARTE POÉTICA que a tendência à criação literária é uma manifestação natural, sua essência consiste na imitação (mimesis) e no prazer que daí deriva. Ao contrário de Aristóteles, Platão excluiu os poetas de sua república ideal, na medida em que eles são imitadores de algo que está a três degraus do real, ou em suas palavras, os poetas fazem “simulacros com simulacros”. Para Platão, o mundo sensível (segundo degrau) é uma ilusão, uma representação imperfeita do mundo inteligível, das ideias. Aristóteles detona com essa concepção metafísica da realidade ao dizer que primeiro existem as coisas e depois as ideias das coisas. E disse mais, que nos interessa aqui, que sob as aparências exteriores, a arte descobre a essência interna das coisas. Arte poética, esse pequeno grande livro de Aristóteles, encima a lista de obras indispensáveis para a aquisição de uma cultura erudita da arte de escrever. Outro filósofo que se ocupou com a arte da escrita foi Arthur Schopenhauer. Esse pensador é debochado, pessimista. Seu livro A ARTE DE ESCREVER é pouco técnico e muito crítico, subjetivo, sarcástico, disserta com sua linguagem corrosiva contra tudo e contra todos. Já no primeiro capítulo, Sobre a erudição e os eruditos, detona com professores e alunos. Não o recomendo. O melhor manual sobre a arte que tratamos aqui foi produzido por ANTOINE ALBALAT (jornalista, poeta, ensaísta e crítico literário francês, que viveu entre 1856 e 1935). O título de seu livro é A ARTE DE ESCREVER ENSINADA EM 20 LIÇÕES. Ao contrário de Schopenhauer, Albalat é objetivo, muito técnico, indispensável. O que Albalat nos diz sobre o estilo? “Escrever bem é pensar bem e reproduzir bem, tudo ao mesmo tempo... O estilo é a arte de aprender o valor das palavras e as relações das palavras entre si... O talento não consiste em nos servirmos secamente das palavras, mas em descobrir as imagens, as sensações e os cambiantes que resultam das suas combinações... O ESTILO É, POIS, UMA CRIAÇÃO DE FORMA PELAS IDEIAS E UMA CRIAÇÃO DE IDEIAS PELA FORMA.” Uma observação importante: O manual auxilia, não é fundamental. Ele não transforma ninguém da noite para o dia num escritor, num artista da palavra. Aristóteles diz algo interessante em sua Poética: “Homero pinta o homem melhor do que é”. Não apenas o homem, mas as outras criaturas (reais ou míticas). Pensem na beleza dos deuses gregos! Pensem em Helena, a mulher mais bela da humanidade, que rivalizava com Afrodite (a deusa da beleza), todas elas criação de um poeta. Já falei e escrevi algo como O POETA VÊ O QUE NÃO É PERCEBIDO pelos outros. Não só o vê, mas o expressa com palavras. Coerente com o que diz Aristóteles, o poeta torna a realidade mais visível, ou “porque a vida não basta”, como disse Ferreira Gullar acerca da função da arte. NIETZSCHE é um pouco mais radical: “Temos a arte para não morrer ou enlouquecer perante a verdade”. (AMO O QUE SE ESCREVE COM O PRÓPRIO SANGUE) Para Carlos Drummond de Andrade: “Escritor: não somente uma certa maneira especial de ver as coisas, senão também uma impossibilidade de as ver de qualquer outra maneira”. Outro dito interessante é de Jean-Paul Sartre: “Ninguém é escritor por haver decidido dizer certas coisas, mas por haver decidido dizê-las de determinado modo” Isso que Sartre nos diz equivale ao que Antoine Albalat coloca na Quarta Lição: o ESTILO – o cunho pessoal, a originalidade. Uma frase de Jean Cocteau, que li em minha juventude, não me saiu da cabeça: “ESCREVER É MATAR ALGO INERENTE À PRÓPRIA MORTE”. Não sabia, naquela época, que a escrita viria a ser minha forma mais nobre de salvação. Vocês sabem quem foi WILLIAM FAULKNER? Escritor estadunidense, um dos maiores romancistas do século XX. Esse dado não copiei do sistema de busca do Google, mas da leitura de dez livros de Faulkner: Enquanto agonizo; Uma fábula; Palmeiras selvagens; Luz em agosto; Absalão, Absalão!; Os invencidos; Santuário; Desça, Moisés; Primeiro de maio; e O SOM E A FÚRIA. O som e a fúria coloco entre os dez melhores romances que li em toda minha vida de leitor. Pois bem, Faulkner disse numa entrevista que o escritor se abastece em três fontes imensuráveis: a OBSERVAÇÃO, a EXPERIÊNCIA e a IMAGINAÇÃO. Peço que cada um de vocês, como escritores, olhem para dentro de si e destaquem qual a sua fonte mais generosa e qual a menos generosa. Não tenho problema para dizer que bebo muito na observação e na experiência e pouco na imaginação. A propósito, Faulkner é a prova que justifica o porquê não recomendo A ARTE DE ESCREVER de Schopenhauer. No terceiro capítulo do livro, SOBRE A ESCRITA E O ESTILO, Schopenhauer escreve: “Antes de tudo, há dois tipos de escritores: aqueles que escrevem em função do assunto e os que escrevem por escrever. Os primeiros tiveram pensamentos, ou fizeram experiências, que lhes parecem dignos de ser comunicados; os outros precisam de dinheiro e por isso escrevem, só por dinheiro”. Com a palavra, Faulkner: “Até o sucesso de Santuário eu vinha pintando paredes e fazendo serviços de carpintaria, mas num certo momento senti que poderia ter lucro escrevendo”. PARA FALARMOS DA ARTE DE ESCREVER, é inevitável que falemos primeiro sobre a leitura. JORGE LUIS BORGES, o grande escritor argentino, era humilde para confessar no poema UN LECTOR: “Que otros se jacten de las páginas que han escrito; a mí me enorgullecen las que he leído” Sempre respondo que o mais nobre benefício da leitura é a necessidade de escrever. A leitura também amplia significativamente nosso universo lexical, ensina ortografia, construção de frases, ritmos, imagens, gêneros... e tudo o que é indispensável para atender à necessidade da escrita. Há uns dez anos, dando aula particular, orientei meu aluno a fazer uma redação. No primeiro dia, pedi que ele escrevesse um texto sobre exoplaneta. Poderia ter pedido para escrever sobre a monocultura da soja, mobilidade urbana, outros assuntos mais conhecidos. Sem o auxílio do Google na hora, ele não conseguiu produzir um parágrafo minimamente aceitável. Não escrevemos sobre o que não conhecemos, muito menos se não temos a imaginação como fonte imensurável (como bem entendia Faulkner). Nesse sentido, BUFFON (citado por Albalat) disse: “OS NOSSOS CONHECIMENTOS SÃO OS GERMES DAS NOSSAS PRODUÇÕES” Escolhi três revistas que traziam matéria sobre exoplanetas e emprestei ao meu aluno. Pedi-lhe que lesse as matérias, e produzisse uma redação, com três parágrafos, respectivamente, INTRODUÇÃO, DESENVOLVIMENTO e CONCLUSÃO. Essas leituras o ajudaram a escrever sobre o tema solicitado. LEITURAS À semelhança de Borges, me orgulho das leituras que fiz, que faço e que farei até quando permitir a saúde dos olhos, da cabeça, dos nervos... Comecei a ler na biblioteca do então Colégio Polivalente, no ano de 1973, portanto, há 49 anos. A longevidade conta não apenas para a quantidade, como para a qualidade da leitura. Hoje leio menos, porque escrevo mais. Minha biblioteca ideal, todavia, continua a incluir livros e livros. A relação desse acervo encontra-se publicada desde 2007. Alguns títulos/autores: FICÇÃO: - A cabana do Pai Thomás, Harriet Stowe; - Admirável mundo novo, Aldous Huxley; - A insustentável leveza do ser, Milan Kundera; - Alice no País das Maravilhas, Lewis Carrol; - A paixão segundo G. H., Clarice Lispector; - Cem anos de solidão, García Márquez; - Dom Quixote, Miguel de Cervantes; - Em busca do tempo perdido, Marcel Proust; - Ficções, J.L. Borges; - Grande sertão: veredas, João Guimarães Rosa; - Madame Bovary, Gustave Flaubert; - Maíra, Darcy Ribeiro; - Memórias póstumas de Brás Cubas, Machado de Assis; - O evangelho segundo Jesus Cristo, José Saramago; - O lobo da estepe, Hermann Hesse; - O mundo de Sofia, Jostein Gaarder; - O processe, F. Kafka; - Orlando, Virgínia Woolf; - Os irmãos Karámazov, F. Dostoievski; - Os rios profundos, José Maria Arguedas; - O tempo e o vento, Erico Veríssimo; - O velho e o mar, E. Hemingway; - Quarup, Antônio Callado; - Robinson Crusué, Daniel Defoe; - Terra sonâmbula, Mia Couto; - Torto arado, Itamar Vieira Junior; - Todos os fogos o fogo, Julio Cortázar; - Ulisses, James Joyce; - Vidas secas, Graciliano Ramos... POESIA: - Olavo Bilac, Augusto dos Anjos, Manuel Bandeira, Mario Quintana, Pablo Neruda, Fernando Pessoa, Carlos Drummond de Andrade, Rainer-Maria Rilke, Baudelaire, Ezra Pound, Dante, Whitman, João Cabral de Melo Neto, Carlos Nejar, Manoel de Barros, Luís de Camões, Vinícius de Moraes, Paulo Leminski... FILOSOFIA, HISTÓRIA, PSICOLOGIA, SOCIOLOGIA, ANTROPOLOGIA, BIOLOGIA, ASTRONOMIA... - A arte da vida, Zygmunt Bauman; - A criação do mundo, George Gamov; - A essência do Cristianismo, Ludwig Feuerbach; - A morte da fé, Sam Harris; - A mutação interior, J. Krishnamurti; - A necessidade da arte, Ernst Fischer; - A origem das espécies, Charles Darwin; - A realidade não é o que parece, Carlo Rovelli; - A rebelião das massas, José Ortega y Gasset; - Armas, germes e aço, Jared Diamond; - As eras de Gaia, James Lovelock; - Assim falou Zaratustra, F. Nietzsche; - Conferências e escritos filosóficos, M. Heidegger; - Cosmos, Carl Sagan; - Dicionário filosófico, Voltaire; - Édipo: mito e complexo, Patrick Mullahy; - Ensaios, M. Montaigne; - O futuro de uma ilusão e O mal-estar na cultura, S. Freud; - O gene egoísta, Richard Dawkins; - O homem-deus, Luc Ferry; - O macaco nu, Desmond Morris; - O novo iluminismo, Steven Pinker - O ópio dos intelectuais, Raymond Aron; - Os sumérios, S.N. Kramer; - Por que não sou cristão, Bertrand Russel; - Psicanálise da sociedade contemporânea, Erich Fromm; - Quebrando o encanto, Daniel Dennett; - Sapiens: uma breve história da humanidade, Yuval Noah Harari; - Uma breve história do tempo, Stephen Hawking... Na relação acima, mais importante que o título é o nome do autor. Ao citar, por exemplo, ASSIM FALOU ZARATUSTRA, cito Nietzsche. Todos os seus livros são relevantes. Não apenas os seus livros, mas também os que foram escritos por outros autores sobre os livros de Nietzsche, sobre a filosofia nietzschiana. ESCRITOS Iniciei minha carreira de leitor em 1973 e de escritor (resultados das múltiplas leituras) no fim dos anos oitenta. A publicação do primeiro livro, todavia, só aconteceu em 2006. Dezessete anos de leitura, dezessete anos a escrever até Ponteiros de palavras. Depois vieram Vozes e vertentes (2010), O fogo das palavras (2011), Margens impossíveis (2013), Palavras de fogo (2014), Considerações neoateístas (2016) e Claro&profundo (2019). Tudo o que escrevi e publiquei até o presente considero meros ensaios poéticos e filosóficos para produções futuras. Na abordagem do tema em pauta, a arte de escrever, é mais relevante falar-lhes do COMO escrevo. Não O QUÊ ou O PORQUÊ (já mencionado anteriormente). COMO? Eis a questão... Respondo com uma frase de MÁRIO QUINTANA, que ele intitula DA DIFÍCIL FACILIDADE: “É PRECISO ESCREVER UM POEMA VÁRIAS VEZES PARA QUE DÊ A IMPRESSÃO DE QUE FOI ESCRITO PELA PRIMEIRA VEZ” Não paro de reescrever meus poemas e meus microensaios e aforismos. Ultimamente, preparo um livro de haicai, forma fixa de poema com três versos. Atravesso a madrugada para escrever um único haicai. Ao sacrificar o sono, que vem e se vai, escrevo com o próprio sangue, como era digno de amor a Zaratustra. MUITO OBRIGADO!