segunda-feira, 29 de julho de 2019

ANSIEDADE E GOZO


     ANSIEDADE E GOZO
(NÃO NECESSARIAMENTE NESSA ORDEM)

       O conhecimento só se efetiva no momento em que uma tese é comprovada pelos fatos reais e vice-versa (quando a realidade observada permite depreender suas categorias como verdadeiras).
         As redes sociais já constituem, por excelência, o modo parecer, ao mesmo tempo em que geram mais ansiedade em seus usuários compulsivos. Estes se definem como hedonistas (por um lado), ou como ansiosos (por outro). Hedonistas ou ansiosos, todavia, não representam classes separadas de indivíduos, uma vez que trocam de posição, a depender das circunstâncias em que se encontram eles.
         O esforço de parecer bem no dia a dia, sob as imposições do lar, do trabalho, do estudo e da condição financeira, por exemplo, enfatiza um estado contrário, de anseio por uma casa melhor, por um emprego mais gratificante, por férias, por viagens, por escolhas novas etc. Os ansiosos veem o melhor acontecer com os outros. A ansiedade que os massacra cotidianamente se escancara na urgência da postagem salvadora, que consiste em ostentar hedonisticamente. Aeroportos (a partir do check-in de conexão no Facebook), edifícios majestosos, pratos especiais, praias paradisíacas, tudo identificado apenas com legendas do tipo “fui!”, “de boa!”, “lindo!” e “gratidão!”. Tais postagens justificam o parecer para poucos e retroalimentam a ansiedade para uma maioria de interlocutores (mergulhados na azáfama cotidiana até o pescoço).
         As redes sociais potencializam a ansiedade demorada e o gozo momentâneo, em vista da textualização de uma e de outro. A aparente superficialidade com que os atores da comunicação se interagem requer um estudo sério, que confira cientificidade ao que foi exposto acima.

domingo, 28 de julho de 2019

A VERDADE


O ESTADO SE MOBILIZA CONTRA 
OS TRAFICANTES DE DROGA.
A SOCIEDADE DEVERIA SE MOBILIZAR 
CONTRA O CONSUMO. 

sábado, 27 de julho de 2019

PROTÁGORAS: O MAIOR

     O filósofo da Antiguidade verdadeiramente grande foi Protágoras, malgrado a avalanche de críticas dirigida contra ele por todos os pensadores, que repercutem os antissofistas Sócrates e Platão.
      Em tempo pós-moderno, também caracterizado pelo relativismo, o nome de Protágoras é citado com frequência, como prova de que cada pessoa (e sua interpretação de seres, coisas e fenômenos) é depositária da verdade.
        Karl Popper me abriu os olhos para esse reducionismo histórico sobre o pensamento de Protágoras. O homo mensura – “o homem é a medida de todas as coisas” – não pode ser interpretado como se cada um, em separado, pudesse ser o detentor da verdade. Segundo Popper, não é só isso.
        A filosofia teve origem como uma proposta racional de acabar com o mito, com a deificação da natureza. Com exceção de Marx, Nietzsche, Freud e os neoateístas contemporâneos, os pensadores continuam a acreditar numa divindade, num absoluto de todas as medidas. Entre eles, Parmênides e Platão são radicais defensores de que só os deuses possuem conhecimento.
Não há relativismo no argumento de Protágoras, mas a especificação de que “o conhecimento humano deve ser tomado como nosso padrão”, uma vez que “nada sabemos sobre os deuses”. As ciências, por exemplo, constituem o corpus de conhecimento elaborado pela razão.
         Protágoras rompe com a fabulação anterior, que foi ab origine o grande propósito da filosofia, o de dar ao homem a autêntica e definitiva autonomia. 

quarta-feira, 24 de julho de 2019

ALMA DE POETA


A alma racional 
subsume 
(a sensitiva e) 

a vegetativa 
- alma da planta.
Alma completa
por outras almas
- alma de poeta.



(Na praça central de Santiago, Rio Grande do Sul, cada poeta ganhou uma árvore. A mim foi destinado um pinheiro, que ganha meu abraço toda vez que visito a Terra dos Poetas.)

terça-feira, 23 de julho de 2019

LIÇÃO INESQUECÍVEL



         A recomendação insistente dos pais de que o fogo queima não é levado a sério pela criança, pelo menos a ponto de evitar a primeira queimadura autoprovocada por ela. O conhecimento de mundo transmitido de uma forma teórica, discursiva, via de regra, apenas se efetiva com a experiência pessoal.
         Até os quatorze anos, cansei de ouvir dos adultos que era feio roubar, aliás, um dos dez mandamentos bíblicos já preceitua a moral correta “não roubarás”. Com a idade acima, roubei um cadeado grande, novo, amarelo como o ouro, que se encontrava aberto no portão lateral de uma casa momentaneamente vazia.
         Naquele ano de 1973, vendia doce para minha tia. A casa em que morávamos na Francisco Brandão distava meio quilômetro da zona do meretrício. Não ganhava troco algum por esse trabalho, uma vez que tinha obrigação para com os parentes que me hospedavam na cidade. Caso quisesse ir ao Cinema Imperial no domingo (para ver filme de faroeste), obrigava-me a vender garrafa nos botecos da Bento Gonçalves.
         A zona constituía o mercado certo para o pudim de pão que eu mal equilibrava numa bandeja de lata. No meio da tarde, as prostitutas me compravam toda a oferta, enquanto se embelezavam para outro comércio na próxima noite.
         No dia do roubo, a casa da Gringa arejava sozinha, não respondendo minhas palmas na porta da frente. Ao contorná-la pelo lado, eis que a ocasião se oferece ao menino do interior, dotado até então de um caráter impoluto.
Com certa dificuldade, guardei o objeto em meu bolso. Em casa, escondi-o dentro da malinha de papel, sob as roupas dobradas. Na verdade, roubara algo que não usaria certamente. Assim que retornei da escola no outro dia, um dos primos veio ao meu encontro com a pergunta avassaladora “Onde você escondeu o cadeado?”. O rubor tingiu meu rosto branquelo antes que balbuciasse qualquer coisa muito próxima da confissão. Ele disse mais: “A mulher está esperando por você, vai lá para devolver-lhe o cadeado”.
         De repente, o mundo ficou pequeno ante a vergonha que tomou conta de mim. Alguns riam, outros fechavam o cenho ao me verem naquela situação embaraçosa ao extremo. A saída menos desonrosa foi devolver o cadeado para sua dona.
         Trêmulo como uma vara verde, pedi-lhe desculpas. Em seguida, Gringa me dirigiu um sermão sobre não roubar mais, cujo conteúdo moral passou a constituir minha personalidade doravante. Ela flagrara minha ação reprovável de outra casa, e só não registrou um Boletim de Ocorrência por compaixão. Sua filha, disse-me ela, era minha colega de aula, onde talvez sofresse constrangimento ainda maior, a ponto de dar outro rumo à minha vida. Ela manteve a discrição. Uma pessoa que gostaria de reencontrá-la já velhinha nestes dias.
         A experiência foi como um fogo que me marcasse o ser para a vida toda. Nunca mais peguei às escondidas o que pertencesse aos outros. Com um comportamento assim orientado, desenvolvi uma ojeriza pelos ladrões contumazes, do assaltante à mão armada ao político corrupto e corruptor.

terça-feira, 16 de julho de 2019

UMBIGUISMO E ALTERIDADE

         Muitas pessoas são analfabetas, outras tantas são alfabetizadas apenas e desistem dos estudos regulares, (via de regra) forçadas pela necessidade de sobreviver economicamente. Elas correm entre a casa e o trabalho, entre o trabalho e a casa, entre a casa e o lugar de diversão...
         No início da Alegoria da Caverna, Sócrates (o alterego de Platão) pede para seu interlocutor imaginar “a maneira como segue o estado da nossa natureza relativamente à instrução e à ignorância”. Dentro de uma morada subterrânea, às sombras, viveriam os homens ignorantes. Libertos da caverna, à luz do Sol, desfrutariam os sábios e virtuosos. A dicotomia platônica representa dois mundos: o sensível e o inteligível.
         A maioria referida no primeiro parágrafo, segundo a alegoria de Platão, tomaria a ilusão como real. Ela não teria consciência da ideia do bem, por exemplo, ou num sentido moderno, mal saberia o que é alteridade.
         Ao rodar pela cidade, encontramos operários na construção, balconistas na loja, catadores de papel, entre outros trabalhadores, cuja renda é limitada pela falta de instrução. Sem noção do próprio limite, essas pessoas até se sentem felizes – sentimento que constitui uma impossibilidade para outras com empregos melhores.
         Na hipótese de um meteoro estiver em rota de colisão com a Terra, a colocar em risco a vida humana, os moradores no “subterrâneo” nada saberiam até o momento do impacto. Mesmo que ouvissem alguma notícia pelos meios de comunicação, talvez caíssem de joelhos, dobrados pela crença num castigo dos céus. Uma minoria, no entanto, ocupar-se-ia com a empresa de desviar o meteoro (de posse de uma tecnologia desenvolvida por ela).

         A possibilidade de salvar a humanidade no caso acima passa pelo saber, cujo impulso “é forte demais para que ainda sejamos capazes de estimar uma felicidade sem conhecimento ou a felicidade de uma ilusão firme” – no dizer de Nietzsche. 

sexta-feira, 12 de julho de 2019

BRASIL POP


BRASIL POP

         A cultura musical predominante no Brasil é popular. Para ser bem-sucedido, o artista vai aonde o povo está. O senso comum, por sua maioria açambarcante, determina o que roda nas mídias. No último mês, a canção mais ouvida no Brasil é Todo mundo vai sofrer, da funkeira Marília Mendonça.
         Até há cinco minutos, não ouvira essa artista popular, nem por descuido ao zapear no rádio e da televisão, ou acessar algumas plataformas digitais.
         A letra de Todo mundo vai sofrer é paupérrima, de uma simplicidade piegas, muito semelhante a tudo o que viceja midiaticamente no país. O Google me apresenta o poema seguinte:

A garrafa precisa do copo
O copo precisa da mesa
A mesa precisa de mim
E eu preciso da cerveja

Igual eu preciso dele na minha vida
Mas quanto mais eu vou atrás
Mais ele pisa
Então já que é assim
Se por ele eu sofro sem pausa
Quem quiser me amar
Também vai sofrer nessa bagaça

Quem eu quero não me quer
Quem me quer não vou querer
Ninguém vai sofrer sozinho
Todo mundo vai sofrer

         Pelo viés gramatical, o texto é verborrágico (notadamente o refrão), ao gosto dos usuários da língua inculta. Pelo viés poético, não há ritmo algum; exceto a personificação da garrafa, do copo e da mesa, nenhuma figura de linguagem.
          Uma análise do conteúdo, melhor do que a forma, demonstra a pobreza que caracteriza a música popular brasileira. O tema não poderia ser mais adequado: o sentimento de quem foi traído ou deseja algo que não pode ser seu, reconhecido pela expressão chula “dor de corno”. A novidade pouco romântica, de que “ninguém vai sofrer sozinho/ todo mundo vai sofrer”, lava a alma do desprezado, conquista a galera e salva a produção artística.
         Uma pessoa dotada de caráter nobre, com o mínimo de amor próprio, não corre atrás de quem a despreza, tampouco se vinga em inocente (ao arrastá-lo para infortúnio semelhante). O eu-lírico revela uma fraqueza diametralmente oposta a qualquer sucesso na empresa de controlar o próprio querer, a própria vontade.
         A predominância do pop no Brasil ocorre pela falta de uma cultura mais refinada, impedida de se desenvolver por (des)razões várias, como o analfabetismo, a política, o mercado...   

AZULÍSSIMA E FRIA


O Bom Retiro pranteia a morte de uma pessoa muito estimada pela comunidade. A igreja se torna pequena para abrigar todos os presentes ao rito cristão da despedida. O sino bate repetidamente três vezes, enquanto a tarde cai azulíssima e fria.
         Durante o velório, uma hora atrás, deixei o salão e fui ao cemitério. (Não sei explicar este gosto de visita-lo sem a presença dos vivos.) O vento farfalhava as árvores debruçadas sobre o muro tomado de limo, para quebrar a mudez sepulcral que envolvia túmulos e vias de pedra grês. Outra vez, vi todas as fotos em sépia dos falecidos nos últimos setenta anos (desde a construção do cemitério). Mais que ver, li o nome e as datas de início e fim da vida de cada um.
         O primeiro ato de minhas reflexões, entre um sepulcro e outro, resumia-se a recordar como eram as pessoas ali fotografas em seu tempo. Caso não as tivesse conhecido, num segundo ato, pensar no que fizeram em vida, na causa de morrerem mais cedo (algumas) Mesmo não as conhecendo outrora, num terceiro ato, concluir que os dados biográficos (impressos na louça) são um ponto em que se apoia a lembrança de seus parentes. Fotos e datas constituem agora o único registro contra o esquecimento inexorável.
         No fim da avenida central (que começa no portão de entrada), encontro o túmulo de alguém que me é muito especial. Nesse momento, a racionalidade cede lugar à emoção, o filósofo volta a ser gente sensível, e meus olhos manam uma dor que persiste depois de treze anos. As rosas artificiais me parecem demasiadamente tristes para enfeitar o nicho com a foto da minha mãe. Ela gostava tanto de flores naturais.
         O cortejo deixa a igreja, segue pela estrada a rezar o Terço. O cemitério o espera com o portão aberto. O vento continua a violar o silêncio da tarde – azulíssima e fria.

DUELO NA MADRUGADA


DUELO NA MADRUGADA
(uma fábula pós-moderna)


         Os automóveis percorrem a avenida lado a lado, palavras provocativas se batem no espaço entre as duas janelas abertas. O calor daqueles que as emitem aquece as armas coladas ao corpo dos homens. Meio quilômetro à frente, os carros param no meio da pista.
Uma faca de lâmina comprida desce na mão do primeiro homem. O revólver continua na cintura, louco para ser empunhado firmemente pelo segundo homem. Impetuosa, emocional, ela avança decidida a cortar sem a perícia necessária. O talho atinge o braço esquerdo e o abdômen. Não há distância suficiente para perfurar mortalmente, tampouco o permite o tempo. O revólver reage com eficiência precisa: um, dois e três disparos a queima-roupa.
O Trinta-e-Oito ainda fumega dentro da madrugada fria, seguro por uma mão que vacila entre a raiva e a dor. Ele reconhece que não observou o código de honra dos duelos antigos, quando havia paridade de armas. Por isso, a demora a entrar em ação, já a caracterizar legítima defesa.
A faca repica no asfalto e se acomoda em seu nicho intocável. Logo será clicada por jornalistas e blogueiros, vista como um símbolo de sangue, de assassinato.  Seu aço branco reflete a primeira claridade da manhã.
Após presenciar o duelo, um carro foge avenida afora, e o outro se dirige ao hospital (seu condutor está cortado no braço e abdômen). Eles foram cúmplices ao pararem em plena pista de rolamento, como a demarcar a arena para o combate entre as duas armas.