sexta-feira, 27 de setembro de 2019

SUICÍDIO: UMA QUESTÃO FUNDAMENTAL



              Uma palestra realizada na FAE – Centro Universitário sobre o suicídio projetou um slide, que me fez pensar com tristeza na noite passada: o Rio Grande do Sul figura em primeiro lugar no ranking de estados pelo número de mortes autoprovocadas no Brasil.
         Os números são dispensáveis para uma reflexão séria, que faço a seguir, cuja validade independe de quanto e sim de por quê. Um caso de suicídio já é muito para a efetivação de uma tragédia que abala profundamente toda apreciação positiva da vida
         A partir do tratamento de indivíduos frustrados em sua intenção suicida, psicólogos, psiquiátricas e estudiosos elencam uma relação de causas possíveis do ato em si. A tentativa de suicídio pode ser comparada ao suicídio? A diferença é apenas de grau, de menos ou maior agressividade?
         A palestrante fez referência a um contrato de não suicídio, assinado durante o internamento psiquiátrico, documento que parece prevenir o contratante da responsabilidade ou do sentimento de culpa. Esse contrato é de uma potência cômica irreprimível. Nenhuma assinatura foi aposta no papel por aqueles que lograram êxito no ato contra a própria vida. Ou a morte autoprovocada constituiria uma assinatura, num tempo e espaços incapazes de serem previstos?
         Por que o Rio Grande do Sul é o melhor no ranking? O que acontece com os gaúchos, reconhecidos pelo traço cultural da positividade? Alguma coisa na água (do chimarrão), no ar, na terra, no fumo, no churrasco, na alma, na vida? Os dois últimos itens (alma e vida) não distinguem os sulinos de outros brasileiros, todos a contribuir para aumentar a taxa de suicídio.
         Independentemente do lugar de origem, idade, cultura, nível de instrução e economia, os homens governam suas vidas buscando a felicidade, e procurando evitar emoções desagradáveis (escreve António Damásio). O suicídio é a negação dessa condição existencial, prova de que há uma anomalia psíquica em nossa sociedade.

quinta-feira, 26 de setembro de 2019

NADA MAIS NATURAL



Malgrado a evolução do homem no sentido de conhecer, explorar e subjugar a natureza, no fundo, ele ainda é dependente dela a cada respiração.
            O sentimento de grandeza que o coloca muito acima dos demais seres vivos, base subjetiva para o antropocentrismo, nada tem de nobre vis-à-vis ao seu comportamento agressivo e destruidor.
            As conquistas da cultura humana não podem ocorrer à custa de alguma degradação externa, ambiental.
 Embora a consciência do certo e do errado tenha despertado o homem da animalidade, os danos causados à vida de um modo geral já ultrapassam os limites do recuperável.
Sem essa consciência, todavia, provavelmente o homem não teria sobrevivido até hoje neste paraíso chamado Terra. O amplo domínio ainda cabe a seus instintos, a suas pulsões – nada mais natural.   

segunda-feira, 23 de setembro de 2019

EIS A PRIMAVERA


I
         O homem emergiu da natureza por intermédio da cultura, que consiste em todas as crenças, ideias, linguagens, costumes, artes, instituições, tecnologias etc. Desde a primeira ferramenta (feita de pedra ou madeira), ele passou a ser humano. O processo foi demorado e difícil no começo, de completa dependência do meio natural, onde nossos ancestrais coletavam e caçavam para a sobrevivência. Com a descoberta e implementação da agricultura, avançamos para outro estágio, de exploração da natureza. O próprio termo “cultura” se origina do latim “colere”, que significa “cultivar plantas”. A demanda por recursos naturais se acelerou desde as comunidades agrícolas à era industrial, quando o poder extrativista ganhou maioridade, iniciando-se uma corrida de exploração econômica e de destruição ambiental.

II
         O fato de o homem se tornar independente da natureza traz algumas consequências negativas para a vida (de ambos), que hoje se sabe comparáveis ao suicídio. Esse saber, todavia, não foi assimilado pela humanidade, que potencializa sua capacidade destrutiva ao se organizar em estados nacionais (cujo maior objetivo e aumentar continuamente o PIB.

III
         Antes que a morte chegue a Terra, ainda é possível aprender sobre sua capacidade de renovação (ou regeneração) a partir da posição em que se encontra na órbita translacional. Com a maior ou menor distância do Sol, ela esfria abaixo de 0ºC ou esquenta acima de 50ºC. Entre inverno e verão, duas estações representam um equilíbrio: primavera e outono.

IV
         Hoje é chegada a primavera no hemisfério sul. Os campos ainda se tornam verdes, as matas se cobrem de flores, os pássaros cantam... No hemisfério norte, o outono chega tão agradável em sua cor e doura.

V
         O processo de aculturação nos afastou da natureza, tornando-nos incapazes de usufruí-la de uma forma harmônica. Na cultura moderna, pós-industrial, perdemos a capacidade de nos renovar ciclicamente, não mais experimentamos uma primavera em nossos espíritos (quase sempre enfastiado pela mesmice). Toda passagem de ano nos ilude com uma mudança, quando fazemos festa, mas, outra vez, a realidade nos apreende em seguida.

VI
         O retorno à natureza é materialmente impossível, na medida em que já foi ultrapassada a área de sua intersecção com a cultura humana. Felizmente, não é tarde para buscarmos uma reaproximação espiritual com ela. Nestes dias, temos mais uma oportunidade de nos permitir um rejuvenescimento com flores, borboletas, pássaros, manhãs azuis...

quarta-feira, 18 de setembro de 2019

PERCEPÇÃO E CURA


        Um critério irrefutável de normalidade é a pessoa buscar o prazer e evitar a dor. Freud denominou essa tendência de Princípio do Prazer (ou Princípio da Realidade, quando se considera o mundo exterior).
    O sofrimento psíquico parece ter como um de seus sintomas o não querer se livrar dele. O indivíduo se afasta dos demais membros de sua família, de seu círculo de amigos ou colegas de trabalho, enfim, dos ambientes sociais a que pertence obrigatoriamente. A causa da doença não mais denuncia um problema exógeno, como pensa muita gente grande, mas reporta ao interior do próprio indivíduo.
         Destarte, o que é anormal no depressivo, por exemplo?
         Em primeiro lugar, a inverter a ordem acima, constitui a forma como o indivíduo reage às injunções de seu entorno social e, em segundo, a ocultação do desastre instaurado em sua psique.
         A percepção da doença, o que é paradoxal, ocorre pelos outros que circundam o universo singular do depressivo. Tal percepção, em muitos casos conhecidos, representa a parte inicial e indispensável para o processo da cura. Nesse aspecto, reescreve-se o bordão foucaultiano, “vigiar e punir”, para “perceber e curar”.
         O indivíduo com o problema psíquico tem que despertar da letargia, do solipsismo em que vive (via de regra). Ele necessita desejar visceralmente não querer o sofrimento – antes que a patologia evolua para pior.

domingo, 15 de setembro de 2019

A FALÁCIA DO RELATIVISMO


      Alguns psicólogos, no afã de ampliar ad infinitum o campo de sua atuação, asseguram-nos que os conceitos de normal e patológico são “extremamente relativos” (BOCK, 2008).
Os vieses culturais, por mais diferentes que se apresentam entre duas sociedades, entre dois povos, não permitem a avaliação pelo relativismo extremo. Obviamente, esses estudiosos tomam uns poucos exemplos como referência de suas generalizações apressadas.
A essa falácia pseudocientífica se juntam antropólogos e sociólogos.
HARRIS (2013) cita um caso de relativismo:

Se descobríssemos uma nova tribo na Amazônia amanhã, nenhum cientista assumiria a priori que essas pessoas teriam saúde física e prosperidade material excelentes. O que faríamos seria averiguar a expectativa de vida da tribo, sua ingestão diária de calorias, a porcentagem de mulheres mortas no parto, a prevalência de doenças infecciosas, a presença de cultura material etc. Tais questões teriam respostas, e elas provavelmente revelariam que viver na Idade da Pedra exige alguns sacrifícios. Porém, notícias de que esse bom povo gosta de imolar seus primogênitos para deuses imaginários fariam alguns antropólogos (talvez a maioria deles) dizerem que essa tribo possui um código moral alternativo, tão válido e irrefutável quanto o nosso.

O filósofo e neurocientista contemporiza que “alguns antropólogos têm se recusado a seguir seus colegas nesse princípio intelectual”.
O exemplo de uma tribo da Amazônia é extremo, uma exceção para o grande número de sociedades que habitam o planeta nestes dias e que se assemelham no espectro de suas culturas. Toda diversidade é pouco para ignorar as similitudes. Afinal, trata-se do mesmo homo sapiens.

BOCK, Ana Mercês Bahia. Psicologias: uma introdução ao estudo da psicologia / Ana Mercês Bahia Bock, Odair Furtado, Maria de Lourdes Trassi Teixeira. – 14ª edição – São Paulo: Saraiva, 2008, p. 348.

HARRIS, Sam. A paisagem moral: Como a Ciência pode determinar os valores humanos / Sam Harris; tradução Claudio Angelo. 1ª ed. – São Paulo: Companhia das Letras, 2013, pp. 26 e 27.

terça-feira, 10 de setembro de 2019

DIA 31 DE AGOSTO


        O dia 31 de agosto não constava no Calendário Juliano, criado pelo ditador Júlio César no ano 46 a. C. Os senadores da República decidiram fazer uma homenagem ao político com o nome de um mês. Quintilis ganhou a nova denominação de Julius.
O início do ano mudara antes, de 1º de março para 1º de janeiro. Dessa forma, o mês quinto passou a ser o sétimo.
Esse descompasso linguístico persiste até hoje, demonstrável nos radicais (que sofreram metaplasmo ou não) de setembro, outubro, novembro e dezembro. Antes da mudança do primeiro do ano de março para janeiro, esses meses representavam sétimo, oitavo, noveno e décimo na sequência dos ordinais.



       Quatro décadas mais tarde, o imperador César Augusto exigiu uma homenagem semelhante à atribuída a Júlio César. Condição imposta: o mês dedicado a ele seria subsequente a Julius, com o mesmo número de dias.
A solução mais simples foi emprestar um dia de um mês anterior e somar aos trinta dias de Sextilis, que passou à denominação de Augustus.
O Senado Romano fazia alguma coisa mais que festas e tramoias: puxava o saco de quem mandava de fato na república ou no império.

segunda-feira, 2 de setembro de 2019

INDIVIDUALISMO E DOENÇA


        O homem é um animal social, isso se sabe desde antes de Aristóteles dizer algo nesse sentido. Para ser mais preciso, desde antes do que se convencionou denominar “civilização”, o homo sapiens evoluiu graças à capacidade de se organizar em grupos cada vez maior. A propósito, a civilização pode ter alterado a natureza humana a ponto de não constituir um exagero nietzschiano responsabilizá-la por uma degeneração (que mina suas bases).
         O tecido social não oculta mais seus pontos de fragilidade, de ruptura, onde as células do mal se desenvolvem por “geração espontânea”. Certamente, o homem primitivo não trazia em seu pool genético qualquer propensão ao individualismo radical bastante observado nestes dias.
         A tendência ao solipsismo é incontornável. As pessoas passam a se isolar em apartamentos (cujo significado é separação, afastamento). Mesmo conectadas na grande rede de computadores, elas são cada vez mais individualistas – e solitárias.  Nesse estado, ou internalizam os efeitos do isolamento, como solidão, depressão, loucura e morte, ou os exterioriza em palavras e gestos antissociais, como maledicência, espezinhamento (troll), violência e morte.
         Sigmund Freud escreveu em O futuro de uma ilusão (ensaio magnífico) que “todo indivíduo é virtualmente inimigo da civilização”, que esta “tem de se erigir sobre a coerção e a renúncia ao instinto”. O problema (que se agiganta na pós-modernidade) consiste no contrário: os indivíduos não abrem mão de seus instintos e pulsões, que são racionalizados como a própria vontade, o próprio Eu.