quarta-feira, 23 de março de 2022

O VENDEDOR DE LIVROS (CRÔNICA DE CURITIBA)

 

   O homem vende livros na Feira do Largo da Ordem, que acontece todos os domingos em Curitiba. Seu espaço fica a poucos metros do bebedouro (onde os tropeiros davam água aos cavalos e mulas desde meados do século XVIII).

           Diferentemente de outros feirantes, o livreiro não dispõe de uma barraca armada: vende ao sol. Mesmo assim, ele é bem-humorado, a divertir seus clientes com algumas tiradas.

           Todas as vezes que vou à feira, dedico um tempo maior a conversar com o homem.

Dois chistes de sua chancela transcrevo abaixo:

           A mulher dá uma olhada para tantos volumes e pergunta como eles estão organizados nas caixas de madeira. A resposta é categórica: “Os livros estão organizados de uma forma rigorosamente aleatória”.

           Domingo último, ao passear pelo Largo da Ordem, mais uma vez me detive em frente ao amigo vendedor de livros. A chuva era iminente, por isso me preocupei com o acervo exposto. Com um sorriso de tranquilidade, o homem apontou para uma lona enrolada:

           “Tenho aqui o preservativo cultural.”

           Infelizmente, a garoa caiu mais grossa, e o homem teve que desenrolar o “preservativo cultural” e estendê-lo sobre os livros arrumados de uma forma “rigorosamente aleatória”.

domingo, 6 de março de 2022

NÃO EMPODERAMENTO

 

        Em 2020, escrevi o artigo Rede social Facebook: o não empoderamento do sujeito do enunciado, como avaliação no curso de Filosofia (FAE Centro Universitário, Curitiba). No momento em que a mídia social possibilita a um grande número de usuários criar uma página e se inserir no que pode ser considerado letramento digital, ousei questionar diversos estudos acadêmicos que apontam certo empoderamento pessoal.

       Para tanto, desenvolvi meu argumento baseado em três referências: Mikhail Bakhtin, Platão e Sigmund Freud. Da análise do gênero discursivo recorrente, do conteúdo opinativo e narcisista da enunciação, sustentei que o sujeito que a elabora não se efetiva como interlocutor dialógico, não contribui para a verdade e tampouco cumpre um papel de relevância intersubjetiva. Ademais, há de se considerar o poder de manipulação do Facebook, recentemente denunciado por ex-colaboradores da startap.

       A partir de Bakhtin, esclareci o que seja o enunciado dentro do processo comunicativo. O sujeito é quem fala ou escreve para um ouvinte ou leitor que dialoga com ele. Esse segundo componente da relação dialogal, por sua vez, ocupa “uma ativa posição responsiva: concorda ou discorda” do primeiro, com o qual alterna o papel de enunciador. O enunciado é tudo o que produzido durante a comunicação oral ou escrita. O linguista e filósofo russo classificou os gêneros discursivos de primários (conversa, bilhete, e-mail etc.) e secundários (crônica, conto, artigo etc.).

       Da réplica do diálogo cotidiano ao comentário mais longo em que se expressam ideias, apreciações e juízos de valor, a opinião constitui a maioria dos enunciados no Facebook. Na linha segmentada proposta por Platão, a opinião consiste numa forma primária de conhecimento, fundamentado em ilusões, crenças e preconceitos. Nesse aspecto o filósofo rende tributo a Parmênides, pré-socrático que opunha a opinião à verdade.

       Em vista de sua subjetividade, de seu caráter íntimo, a opinião visa a dar evidência ao sujeito que a enuncia. A imagem de si mesmo, na percepção desse sujeito, merece o compartilhamento com o outro, independentemente da concessão dialogal. Pari passu com outras semioses (a exemplo do selfie), a enunciação é motivada pelo narcisismo, ou a necessidade de investimento no Eu, segundo Freud. No âmbito hi-tech, o Facebook representa o lago que reflete a própria face piegas do sujeito enunciador. Antes de comunicar algo, de exercer uma função social, todo enunciado, acompanhado de imagem ou não, presta-se à afirmação de uma identidade narcísica.

       Em síntese, não há empoderamento no emprego de gêneros primários (como a conversa cotidiana), não há na opinião e na expressão narcisista. Para se tornar empoderado, o usuário deve produzir uma forma de gênero digital que influencie seu interlocutor, que se aprofunde na busca da verdade e que se caracterize pela alteridade. Não há empoderamento sem considerar a relação com o outro.

quinta-feira, 3 de março de 2022

DRAMA PESSOAL

 

        Hoje levantei com a ideia de pintar meu autorretrato com vitiligo. Pictoricamente, estas manchas mais claras na testa, acima da sobrancelha e no extremo direito da boca darão ao quadro um aspecto interessante.

       Outra ideia me ocorreu nesta manhã: iniciar a escrita de um romance. Depois que li Terra sonâmbula (Mia Couto) e Torto arado (Itamar Vieira Júnior), essa ideia se renova com frequência (sempre vencida pela autocrítica).

       Qual é a autocrítica?

       Por um lado, reconheço que não estou preparado para tão grande empreendimento criativo, que me exigiria muito suor, muita queima de neurônio. Por outro, penso que o compromisso com a realidade é mais urgente. O mundo não anda bem, a necessitar do meu engajamento filosófico.

       Platão poderia estar certo em deixar os poetas fora de sua república, porque eles perpetuam a ilusão, o estado sensível do fundo da caverna. Para sair à luz, o homem o faz por intermédio da razão, do conhecimento.

       Assim dividido, adianto que não pintarei meu autorretrato, tampouco iniciarei um romance. A arte fica para depois, não obstante a perspectiva de que depois será tarde.  

        

terça-feira, 1 de março de 2022

"GIGANTES DE RAZÃO CIENTÍFICA"

                      Muito antes de ler Charles Taylor, filósofo canadense, eu já chegara aos três grandes nomes da modernidade, que libertaram o homem ocidental do delírio religioso: Copérnico, Darwin e Freud. Tal libertação, ainda incompleta, não ocorre sem grandes frustrações.

         O primeiro nome é Nicolau Copérnico, monge polonês, que descobriu matematicamente que era a Terra que girava em torno do Sol, e não o contrário (como sustentava todo o saber anterior). Sua descoberta gerou um grande mal-estar em pleno apogeu do Cristianismo, quando a Terra estava no centro do mundo, com o Deus sobre ela, sentado num “sólio de nuvens” (no dizer de Will Durant). Com estudos posteriores, nosso planeta foi perdendo cada vez a centralidade, reduzindo-se a um grão de poeira na imensidão do espaço-tempo. Copérnico receoso de que seu estudo causaria uma indignação muito grande, com consequências terríveis para ele, publicou-o um pouco antes de morrer em 1543. Giordano Bruno, que defendeu mais tarde o heliocentrismo, foi condenado e executado pela santa igreja de Roma.

         O segundo nome e (reputo) o mais importante é Charles Darwin. Outro que tardou para publicar seu A origem das espécies (1959), um escândalo para a Era Vitoriana, de fundamentalismo moral e religioso. A frustração causada por Copérnico foi superada com a crença de que o homem era ainda uma criatura divina, diferente dos outros animais. Darwin explica minuciosamente como ocorreu a evolução das espécies, como homem e chimpanzé pertenciam a uma mesma espécie entre seis e sete milhões de anos antes do presente. O criacionismo, tido como verdade absoluta, passa a ser relegado pela ciência como um outro mito qualquer.

         Sigmund Freud é o terceiro nome citado por Taylor como um dos “gigantes da razão científica”. Com a frustração propiciada pelo darwinismo, abandonou-se a crença no mito adâmico e se agarrou à racionalidade, uma centelha de luz a distinguir o homem. Todavia, surge Freud, que citara Copérnico e Darwin no ensaio Uma dificuldade da psicanálise como responsáveis por causar grandes aborrecimentos à humanidade, com a sua descoberta do inconsciente. O terceiro aborrecimento (frustração da razão que se pressupunha a essência humana). O consciente é a ponta emersa do iceberg, tudo mais é instinto, pulsão, inconsciente.

          A reação criacionista foi violenta no começo da modernidade, com a inquisição, negacionista ao longo dos últimos séculos e adaptável nos dias atuais. Como adaptável? No discurso do Papa Francisco, por exemplo, ao afirmar que o big bang é perfeitamente compatível com a criação divina do mundo. A adaptação é o último esperneio do mito, que se mantém vivo pela fé depositada nele.     

A SALVAÇÃO PELO AMOR

 

    Luc Ferry é um filósofo francês contemporâneo, autor de livros extraordinários, como O que é uma vida bem-sucedida, Aprender a viver, A nova ordem ecológica, A revolução do amor, O homem-Deus, A mais bela história da filosofia, entre outros. Malgrado os títulos acima, nada de autoajuda do tipo senso comum.

         Hoje destaco as cinco grandes respostas filosóficas para uma vida boa, que Ferry disserta em seu A mais bela história da filosofia. Essas cinco respostas foram dadas pela filosofia ao longo de sua trajetória no Ocidente, nos últimos três milênios.

         A primeira resposta surge na Antiguidade, “como pano de fundo dos relatos mitológicos”, retomada mais tarde pelos filósofos clássicos gregos. A ideia central dessa resposta se depreende da concepção de que o mundo expressa uma ordem harmoniosa, o cosmos. “Uma vida boa”, escreve Ferry, “consiste em adequar-se à ordem do mundo”. Ainda hoje, movimentos holísticos voltam a ensinar uma prática que harmonize mente-corpo com a ordem do Universo.

         A segunda resposta, na verdade, é apresentada pela religião cristã, que substituiu a filosofia em franca decadência. Se a filosofia grega remetia a “uma imortalidade muito parcial”, em que o indivíduo se dissolvia na ordem cósmica, o cristianismo propõe a ideia de salvação pessoal, de ressurreição do indivíduo para uma vida eterna e paradisíaca. 

         A terceira resposta é dada a partir do Renascimento, com sua virada homocêntrica. Ela não mais se fundamenta no cosmos ou na divindade supraterrena, mas na razão. Segundo Ferry, com o humanismo a filosofia permite o surgimento de dois traços que passam a caracterizar a vida boa: a valorização do conhecimento, a cultura, a civilidade; e a justificação da vida por um exemplo, por uma contribuição à História, por uma obra, por algo que permaneça na lembrança dos pósteros.

         A quarta resposta resulta de um fracasso da razão iluminista em dar um sentido à vida. Ela é instaurada pelos filósofos da desconstrução, que passaram a considerar “as dimensões da existência até então esquecidas, sufocadas ou reprimidas, como o inconsciente ou a animalidade”. Entre esses pensadores, despontam Nietzsche, Heidegger e Derrida. Para o filósofo do martelo, “todo ideal nega a vida”, de Platão à modernidade, constitui o que ele denominou de niilismo. Sua proposta expressa no pensamento do eterno retorno é de afirmação da vida.

         A quinta resposta vem depois das “conquistas da desconstrução” dos valores tradicionais (religiosos, morais, patrióticos), época que Ferry designa como “humanismo do amor”.   O amor possibilita uma experiência que dá um sentido à vida, com maior alcance ao sair de nós mesmos. Amar e ser amado não é metafísica, sentimento vivenciado na terra, e não no céu.

         Ferry se declara um não nietzschiano, todavia, aproxima-se do pensamento do eterno retorno, que propõe a afirmação da vida, o amor fati como salvação na imanência. Como filósofo da desconstrução, por excelência, Nietzsche via no niilismo uma catástrofe para nossa civilização, difícil de ser superada. Ferry é bem otimista em relação à superação – pelo amor.

 

REFERÊNCIA

FERRY, Luc. A mais bela história da filosofia; tradução de Clóvis Marques. – 2ª ed. – Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2018. 

JAMES WEBB - O NOVO TELESCÓPIO

 

O telescópio espacial James Webb foi lançado no dia 25 de dezembro de 2021, para substituir Hubble, seu congênere anterior. A nova tecnologia foi desenvolvida pela NASA, Agência Espacial Europeia e Agência Espacial Canadense. Os objetivos principais de JW são captar a radiação infravermelha resultante do Universo muito jovem e observar a formação de galáxias e estrelas.

Para entender o primeiro objetivo é necessário aludir a Arno Penzias e Robert Wilson. Em 1965, esses dois cientistas descobriram uma radiação cósmica de fundo em micro-ondas, emitida pelo Universo em expansão acelerada logo após o Big Bang. Noutras palavras, essa radiação é resíduo ainda existente (e captável) da “grande explosão”, geradora de muita luz e calor. Por essa descoberta, Penzias e Wilson foram laureados com o Nobel de Física em 1978.

Para entender o segundo objetivo, a observação de estrelas e galáxias bebês, é necessário conhecimento prévio da relação entre espaço e tempo: quanto mais distante no espaço (o novo telescópio consegue alcançar), mais distante no tempo. A luz apresenta uma velocidade de 300.000 km/s. O Sol que observamos neste exato instante é o Sol de 8 minutos atrás. Sírius, a estrela mais brilhante do céu noturno (a olho nu), há 8,57 anos não se encontra mais lá onde é observada. O JW será capaz de fotografar estrelas e galáxias a bilhões de anos-luz, quando esses corpos celestes emergiam do caos primordial.

A Via Láctea, a galáxia em que habitamos, tem um diâmetro de 100.000 luz. O Sistema Solar se localiza a 27.000 anos-luz do centro galáctico, na borda de um dos braços espiralados (a faixa de estrelas que atravessa o céu em noites limpas). O Universo tem bilhões de galáxias, maiores e menores que a Via Láctea. O telescópio James Webb buscará as galáxias mais distantes (no espaço e no tempo).

"IMAGINAÇÃO DO DESASTRE"

 

                    O futuro chega a passos largos.

                  O que isso quer dizer? Noutras palavras, para que o mais ignorante entenda com uma clareza meridiana.

                  Presentemente, imagina-se um tempo em que as pessoas com dinheiro na mão não comprarão alimento nos supermercados, em razão de inexistir o alimento. Também aumentará o número de famélicos, que não terá dinheiro para comprar o alimento disponível.

                  Esse quadro não é exagero, embora se possa atribui-lo em parte à “imaginação do desastre” (expressão cunhada por Henry James há mais de um século).

                  Uma seca neste verão bastou para faltar verdura no comércio. Somente aqueles que se levantam cedo conseguem comprar esse alimento indispensável. Mudanças climáticas contundentes, provocadas por causas naturais ou humana, poderão trazer carestias mais prolongadas.

                   Não bastasse o fator climático desfavorável, temos o aumento populacional, cuja previsão crava 9,5 bilhões de indivíduos para 2050.

                   A frase acima (para concluir) faz muito sentido, a despeito de toda a esperança depositada na tecnologia em constante evolução.

                   Por favor, pensem nisso!