sexta-feira, 22 de abril de 2011

QUESTÃO NÃO-RELIGIOSA

Sexta-feira Santa é um prato cheio para o colunista que escreve sobre o assunto. O símile “prato cheio” nega um dos costumes antigos deste dia: a obrigatoriedade do jejum e a abstinência de carne (exceto peixe). O contexto metafórico, todavia, permite tal contradição. A propósito, poucos sabem o significado religioso do costume, mas não deixam de segui-lo por esse motivo. Na semana santa, há uma corrida desenfreada atrás de peixe. Os menos santos são os consumidores mais fiéis. O mercado acaba não atendendo a demanda, por razões óbvias: não há disponibilidade suficiente do produto (por um lado), e a venda se limita a apenas uma vez ao ano (por outro). O comércio de carne com sangue no Sábado de Aleluia é incomensuravelmente mais rentável e se mantém o ano todo, a despeito do preço, do colesterol, da ética defendida pelos vegetarianos (ainda uma reduzida minoria). O gaúcho das Missões e da Campanha gosta de churrasco feito com carne fresca de preferência. Por isso, cria muito gado. Não é comum gostar de peixe, acabando com ele ao assorear e envenenar os rios (na produção do arroz e da soja). O máximo que permitem alguns produtores é a criação em cativeiro da única espécie que se adapta ao barro dos açudes: a carpa. Na escala dos sabores, ela perde até para o grumatã, que vive a comer o limo das pedras. O Rosário da minha infância era um paraíso dos prochilodus lineatus (grumatã), antes das redes, das bombas, dos agrotóxicos. Do alto das pedras, dava gosto observá-los a reluzir suas escamas à flor d’água. Hoje restam peixes miúdos (jundiá, lambari, joaninha, entre outros). A traíra, coitada, não lhe dão tempo para se desenvolver ao natural. Peixe que o pantaneiro não come, o gaúcho enche a boca para dizer que é o melhor. Nesta Sexta-feira Santa, resolvi escrever sobre a questão não-religiosa acima, sem problemas.
(Texto escrito para a edição de hoje do Expresso Ilustrado.) 

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