CONTRA .
Froilam de Oliveira
terça-feira, 2 de maio de 2023
FUNÇÃO DESMITIFICADORA
quarta-feira, 28 de setembro de 2022
MEIO TERMO
sábado, 25 de junho de 2022
A ARTE DE ESCREVER
quarta-feira, 23 de março de 2022
O VENDEDOR DE LIVROS (CRÔNICA DE CURITIBA)
O homem vende livros na Feira do Largo da Ordem, que acontece
todos os domingos em Curitiba. Seu espaço fica a poucos metros do bebedouro
(onde os tropeiros davam água aos cavalos e mulas desde meados do século
XVIII).
Diferentemente de
outros feirantes, o livreiro não dispõe de uma barraca armada: vende ao sol.
Mesmo assim, ele é bem-humorado, a divertir seus clientes com algumas tiradas.
Todas as vezes que
vou à feira, dedico um tempo maior a conversar com o homem.
Dois
chistes de sua chancela transcrevo abaixo:
A mulher dá uma
olhada para tantos volumes e pergunta como eles estão organizados nas caixas de
madeira. A resposta é categórica: “Os livros estão organizados de uma forma
rigorosamente aleatória”.
Domingo último, ao
passear pelo Largo da Ordem, mais uma vez me detive em frente ao amigo vendedor
de livros. A chuva era iminente, por isso me preocupei com o acervo exposto.
Com um sorriso de tranquilidade, o homem apontou para uma lona enrolada:
“Tenho aqui o preservativo cultural.”
Infelizmente, a garoa caiu mais grossa, e o homem teve que
desenrolar o “preservativo cultural” e estendê-lo sobre os livros arrumados de
uma forma “rigorosamente aleatória”.
domingo, 6 de março de 2022
NÃO EMPODERAMENTO
Em 2020, escrevi o artigo
Rede social Facebook: o não empoderamento
do sujeito do enunciado, como avaliação no curso de Filosofia (FAE Centro Universitário,
Curitiba). No momento em que a mídia social possibilita a um grande número de
usuários criar uma página e se inserir no que pode ser considerado letramento
digital, ousei questionar diversos estudos acadêmicos que apontam certo
empoderamento pessoal.
Para tanto, desenvolvi meu argumento baseado em três referências:
Mikhail Bakhtin, Platão e Sigmund Freud. Da análise do gênero discursivo
recorrente, do conteúdo opinativo e narcisista da enunciação, sustentei que o
sujeito que a elabora não se efetiva como interlocutor dialógico, não contribui
para a verdade e tampouco cumpre um papel de relevância intersubjetiva. Ademais,
há de se considerar o poder de manipulação do Facebook, recentemente denunciado
por ex-colaboradores da startap.
A partir de Bakhtin, esclareci o que seja o enunciado dentro
do processo comunicativo. O sujeito é quem fala ou escreve para um ouvinte ou
leitor que dialoga com ele. Esse segundo componente da relação dialogal, por
sua vez, ocupa “uma ativa posição responsiva: concorda ou discorda” do primeiro,
com o qual alterna o papel de enunciador. O enunciado é tudo o que produzido
durante a comunicação oral ou escrita. O linguista e filósofo russo classificou
os gêneros discursivos de primários (conversa, bilhete, e-mail etc.) e
secundários (crônica, conto, artigo etc.).
Da réplica do diálogo cotidiano ao comentário mais longo em
que se expressam ideias, apreciações e juízos de valor, a opinião constitui a
maioria dos enunciados no Facebook. Na linha segmentada proposta por Platão, a
opinião consiste numa forma primária de conhecimento, fundamentado em ilusões,
crenças e preconceitos. Nesse aspecto o filósofo rende tributo a Parmênides,
pré-socrático que opunha a opinião à verdade.
Em vista de sua subjetividade, de seu caráter íntimo, a
opinião visa a dar evidência ao sujeito que a enuncia. A imagem de si mesmo, na
percepção desse sujeito, merece o compartilhamento com o outro,
independentemente da concessão dialogal. Pari passu com outras semioses (a
exemplo do selfie), a enunciação é motivada pelo narcisismo, ou a necessidade
de investimento no Eu, segundo Freud. No âmbito hi-tech, o Facebook representa o lago que reflete a própria face piegas
do sujeito enunciador. Antes de comunicar algo, de exercer uma função social,
todo enunciado, acompanhado de imagem ou não, presta-se à afirmação de uma
identidade narcísica.
Em síntese, não há empoderamento no emprego de gêneros
primários (como a conversa cotidiana), não há na opinião e na expressão
narcisista. Para se tornar empoderado, o usuário deve produzir uma forma de
gênero digital que influencie seu interlocutor, que se aprofunde na busca da
verdade e que se caracterize pela alteridade. Não há empoderamento sem considerar
a relação com o outro.
quinta-feira, 3 de março de 2022
DRAMA PESSOAL
Hoje
levantei com a ideia de pintar meu autorretrato com vitiligo. Pictoricamente, estas
manchas mais claras na testa, acima da sobrancelha e no extremo direito da boca
darão ao quadro um aspecto interessante.
Outra ideia me ocorreu nesta manhã: iniciar
a escrita de um romance. Depois que li Terra
sonâmbula (Mia Couto) e Torto arado
(Itamar Vieira Júnior), essa ideia se renova com frequência (sempre vencida
pela autocrítica).
Qual é a autocrítica?
Por um lado, reconheço que não estou
preparado para tão grande empreendimento criativo, que me exigiria muito suor,
muita queima de neurônio. Por outro, penso que o compromisso com a realidade é
mais urgente. O mundo não anda bem, a necessitar do meu engajamento filosófico.
Platão poderia estar certo em deixar os
poetas fora de sua república, porque eles perpetuam a ilusão, o estado sensível
do fundo da caverna. Para sair à luz, o homem o faz por intermédio da razão, do
conhecimento.
Assim dividido, adianto que não pintarei
meu autorretrato, tampouco iniciarei um romance. A arte fica para depois, não
obstante a perspectiva de que depois será tarde.
terça-feira, 1 de março de 2022
"GIGANTES DE RAZÃO CIENTÍFICA"
Muito antes de ler Charles Taylor, filósofo canadense, eu já chegara aos três grandes nomes da modernidade, que libertaram o homem ocidental do delírio religioso: Copérnico, Darwin e Freud. Tal libertação, ainda incompleta, não ocorre sem grandes frustrações.
O primeiro nome é Nicolau Copérnico,
monge polonês, que descobriu matematicamente que era a Terra que girava em
torno do Sol, e não o contrário (como sustentava todo o saber anterior). Sua
descoberta gerou um grande mal-estar em pleno apogeu do Cristianismo, quando a
Terra estava no centro do mundo, com o Deus sobre ela, sentado num “sólio de
nuvens” (no dizer de Will Durant). Com estudos posteriores, nosso planeta foi
perdendo cada vez a centralidade, reduzindo-se a um grão de poeira na imensidão
do espaço-tempo. Copérnico receoso de que seu estudo causaria uma indignação
muito grande, com consequências terríveis para ele, publicou-o um pouco antes
de morrer em 1543. Giordano Bruno, que defendeu mais tarde o heliocentrismo,
foi condenado e executado pela santa igreja de Roma.
O segundo nome e (reputo) o mais
importante é Charles Darwin. Outro que tardou para publicar seu A origem das espécies (1959), um
escândalo para a Era Vitoriana, de fundamentalismo moral e religioso. A
frustração causada por Copérnico foi superada com a crença de que o homem era
ainda uma criatura divina, diferente dos outros animais. Darwin explica
minuciosamente como ocorreu a evolução das espécies, como homem e chimpanzé
pertenciam a uma mesma espécie entre seis e sete milhões de anos antes do
presente. O criacionismo, tido como verdade absoluta, passa a ser relegado pela
ciência como um outro mito qualquer.
Sigmund Freud é o terceiro nome citado
por Taylor como um dos “gigantes da razão científica”. Com a frustração
propiciada pelo darwinismo, abandonou-se a crença no mito adâmico e se agarrou
à racionalidade, uma centelha de luz a distinguir o homem. Todavia, surge
Freud, que citara Copérnico e Darwin no ensaio Uma dificuldade da psicanálise como responsáveis por causar grandes
aborrecimentos à humanidade, com a sua descoberta do inconsciente. O terceiro
aborrecimento (frustração da razão que se pressupunha a essência humana). O
consciente é a ponta emersa do iceberg, tudo mais é instinto, pulsão,
inconsciente.
A SALVAÇÃO PELO AMOR
Luc Ferry é um filósofo
francês contemporâneo, autor de livros extraordinários, como O que é uma vida bem-sucedida, Aprender a
viver, A nova ordem ecológica, A revolução do amor, O homem-Deus, A mais bela história
da filosofia, entre outros. Malgrado os títulos acima, nada de autoajuda do
tipo senso comum.
Hoje destaco as cinco grandes respostas filosóficas para uma
vida boa, que Ferry disserta em seu A
mais bela história da filosofia. Essas cinco respostas foram dadas pela
filosofia ao longo de sua trajetória no Ocidente, nos últimos três milênios.
A primeira resposta surge na Antiguidade, “como pano de
fundo dos relatos mitológicos”, retomada mais tarde pelos filósofos clássicos
gregos. A ideia central dessa resposta se depreende da concepção de que o mundo
expressa uma ordem harmoniosa, o cosmos. “Uma vida boa”, escreve Ferry,
“consiste em adequar-se à ordem do mundo”. Ainda hoje, movimentos holísticos
voltam a ensinar uma prática que harmonize mente-corpo com a ordem do Universo.
A segunda resposta, na verdade, é apresentada pela religião
cristã, que substituiu a filosofia em franca decadência. Se a filosofia grega
remetia a “uma imortalidade muito parcial”, em que o indivíduo se dissolvia na
ordem cósmica, o cristianismo propõe a ideia de salvação pessoal, de
ressurreição do indivíduo para uma vida eterna e paradisíaca.
A terceira resposta é dada a partir do Renascimento, com sua
virada homocêntrica. Ela não mais se fundamenta no cosmos ou na divindade
supraterrena, mas na razão. Segundo Ferry, com o humanismo a filosofia permite
o surgimento de dois traços que passam a caracterizar a vida boa: a valorização
do conhecimento, a cultura, a civilidade; e a justificação da vida por um
exemplo, por uma contribuição à História, por uma obra, por algo que permaneça
na lembrança dos pósteros.
A quarta resposta resulta de um fracasso da razão iluminista
em dar um sentido à vida. Ela é instaurada pelos filósofos da desconstrução,
que passaram a considerar “as dimensões da existência até então esquecidas,
sufocadas ou reprimidas, como o inconsciente ou a animalidade”. Entre esses
pensadores, despontam Nietzsche, Heidegger e Derrida. Para o filósofo do
martelo, “todo ideal nega a vida”, de Platão à modernidade, constitui o que ele
denominou de niilismo. Sua proposta expressa no pensamento do eterno retorno é
de afirmação da vida.
A quinta resposta vem depois das “conquistas da
desconstrução” dos valores tradicionais (religiosos, morais, patrióticos),
época que Ferry designa como “humanismo do amor”. O amor possibilita uma experiência que dá um
sentido à vida, com maior alcance ao sair de nós mesmos. Amar e ser amado não é
metafísica, sentimento vivenciado na terra, e não no céu.
Ferry se declara um não nietzschiano, todavia, aproxima-se
do pensamento do eterno retorno, que propõe a afirmação da vida, o amor fati como salvação na imanência.
Como filósofo da desconstrução, por excelência, Nietzsche via no niilismo uma
catástrofe para nossa civilização, difícil de ser superada. Ferry é bem
otimista em relação à superação – pelo amor.
REFERÊNCIA
FERRY, Luc. A mais bela história da filosofia; tradução
de Clóvis Marques. – 2ª ed. – Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2018.
JAMES WEBB - O NOVO TELESCÓPIO
O
telescópio espacial James Webb foi lançado no dia 25 de dezembro de 2021, para
substituir Hubble, seu congênere anterior. A nova tecnologia foi desenvolvida
pela NASA, Agência Espacial Europeia e Agência Espacial Canadense. Os objetivos
principais de JW são captar a radiação infravermelha resultante do Universo
muito jovem e observar a formação de galáxias e estrelas.
Para entender
o primeiro objetivo é necessário aludir a Arno Penzias e Robert Wilson. Em
1965, esses dois cientistas descobriram uma radiação cósmica de fundo em
micro-ondas, emitida pelo Universo em expansão acelerada logo após o Big Bang. Noutras palavras, essa
radiação é resíduo ainda existente (e captável) da “grande explosão”, geradora
de muita luz e calor. Por essa descoberta, Penzias e Wilson foram laureados com
o Nobel de Física em 1978.
Para
entender o segundo objetivo, a observação de estrelas e galáxias bebês, é
necessário conhecimento prévio da relação entre espaço e tempo: quanto mais
distante no espaço (o novo telescópio consegue alcançar), mais distante no
tempo. A luz apresenta uma velocidade de 300.000 km/s. O Sol que observamos
neste exato instante é o Sol de 8 minutos atrás. Sírius, a estrela mais
brilhante do céu noturno (a olho nu), há 8,57 anos não se encontra mais lá onde
é observada. O JW será capaz de fotografar estrelas e galáxias a bilhões de
anos-luz, quando esses corpos celestes emergiam do caos primordial.
A Via
Láctea, a galáxia em que habitamos, tem um diâmetro de 100.000 luz. O Sistema
Solar se localiza a 27.000 anos-luz do centro galáctico, na borda de um dos
braços espiralados (a faixa de estrelas que atravessa o céu em noites limpas).
O Universo tem bilhões de galáxias, maiores e menores que a Via Láctea. O
telescópio James Webb buscará as galáxias mais distantes (no espaço e no
tempo).
"IMAGINAÇÃO DO DESASTRE"
O
futuro chega a passos largos.
O
que isso quer dizer? Noutras palavras, para que o mais ignorante entenda com
uma clareza meridiana.
Presentemente,
imagina-se um tempo em que as pessoas com dinheiro na mão não comprarão
alimento nos supermercados, em razão de inexistir o alimento. Também aumentará
o número de famélicos, que não terá dinheiro para comprar o alimento
disponível.
Esse
quadro não é exagero, embora se possa atribui-lo em parte à “imaginação do
desastre” (expressão cunhada por Henry James há mais de um século).
Uma
seca neste verão bastou para faltar verdura no comércio. Somente aqueles que se
levantam cedo conseguem comprar esse alimento indispensável. Mudanças
climáticas contundentes, provocadas por causas naturais ou humana, poderão
trazer carestias mais prolongadas.
Não bastasse o fator
climático desfavorável, temos o aumento populacional, cuja previsão crava 9,5
bilhões de indivíduos para 2050.
A frase acima (para concluir)
faz muito sentido, a despeito de toda a esperança depositada na tecnologia em
constante evolução.
Por favor, pensem nisso!
terça-feira, 14 de dezembro de 2021
FRUIÇÃO E CONHECIMENTO
A leitura propicia, a um tempo,
fruição e conhecimento. Mesmo os gêneros literários – romance, conto, crônica, poema
– desencadeiam um processo cognitivo. Mesmo os gêneros filosóficos e
científicos – ensaio, artigo, monografia, tese – despertam o prazer de grandes
descobertas.
A longa experiência como leitor eclético me descortina um
mundo que amalgama saberes e emoções. Nesse sentido, compreendo que o conhecimento
já se transformou numa paixão, como escreve Nietzsche no livro Aurora, aforismo 427.
Nesta tarde, lia O
suicídio do Ocidente, de James Burnham, quando me deparei com o seguinte: “Considero
óbvia demais a discussão de que, se os Estados Unidos entrarem em colapso ou se
tornarem insignificantes, o colapso de outras nações ocidentais não tardará
muito”.
Inobstante a obviedade considerada pelo autor, não me recordo
de ter lido algo nessas palavras até então, conquanto defendo a ideia há bastante
tempo. O colapso estadunidense, acrescento, colocaria em risco uma das maiores
conquistas da civilização ocidental, a liberdade.
Ao ler a passagem acima transcrita, senti certo contentamento
por encontrar uma referência – a
posteriori – à minha análise de um assunto tão relevante.
segunda-feira, 4 de outubro de 2021
A GLÓRIA OU A MORTE
Uma tempestade matou
cinco alpinistas no monte Elbrus, no Cáucaso russo, nesta sexta-feira.
Gostaria de estar na companhia de amigos,
para pensarmos juntos o paradoxo existencial referido de uma forma transversal
pela notícia acima.
Sozinho neste apartamento, começo a
análise de uma forma dialética, hegeliana.
Qual seria a tese?
O homem desafia a natureza, para
satisfazer seu espírito aventureiro, a praticar esportes de alto risco de vida.
Ao lado do alpinismo, há o paraquedismo, o wing walking (equilibrar-se
sobre as asas de um avião), o esqui off-trail (descer montanhas no
esqui), rafting (descida em corredeiras dentro de botes), montaria de
touro, entre outros.
Qual seria a antítese?
A morte, simplesmente.
Para não me afastar do mote inicial, o
alpinismo, mais de 300 pessoas já morreram a escalar o Everest, o pico mais
alto do planeta. Altura, frio, vento, falta de oxigênio e exaustão física são
algumas das causas que se opõem ao objetivo da aventura.
O homem deixará de se aventurar, mesmo
consciente de que corre risco de vida? Sua vida deixa de ter sentido sem a
prática desses esportes chamados radicais? A liberdade para fazer escolhas
perigosas constitui um bem?
Qual seria a síntese?
CANANÉIA
Cananéia
é o município mais meridional do estado de São Paulo, cuja sede dista 265 km da
capital paulista. A vila de Maratayama (hoje Cananéia) fora visitada por Martim
Afonso de Sousa em 1531, antes da fundação de São Vicente em 1532, oficialmente
a povoação mais antiga do Brasil. Na falta de documentação comprobatória da
precedência efetiva, Cananéia ficou sem essa honraria histórica.
No centro velho de Cananéia, as casas
ainda conservam o estilo arquitetônico do período colonial. As ruas são muito
estreitas, dando passagem a apenas um automóvel. A avenida Beira Mar é a mais
movimentada, com restaurantes, bares, pizzarias e vendedores informais, que
atendem os turistas de final de semana. Rampas e escadarias dão acesso ao cais
de onde zarpa a balsa para Ilha Comprida.
O melhor passeio é andar de barco ou
voadeira pela Baía dos Golfinhos até a Ilha do Cardoso. Por incrível que
pareça, na Baía dos Golfinhos há golfinhos realmente. Eles fazem piruetas a dez
metros da embarcação, em dupla ou trio, facilmente captáveis pelo clique
fotográfico. A Ilha do Cardoso é uma reserva natural, com um núcleo de estudos
ecológicos.
A região produz uma árvore popularmente chamada de cataia, cuja folha entra na composição de uma bebida alcoólica muito apreciada, a cachaça de cataia. Quem vier à Cananéia precisa provar dessa cachaça, enquanto espera por um camarão, robalo, betara, siri, entre outros pescados. A gastronomia é um dos itens indispensáveis na agenda do turista, bem como o conhecimento do lugar (atestado por esta crônica).
A BÍBLIA E OS CRISTÃOS
“A
maioria das pessoas deste mundo
acredita
que o Criador do universo
escreveu
um livro”
Sam
Harris
A Bíblia é a palavra revelada – afirma a doutrina e
acredita piamente todos os cristãos. O pressuposto é que houve um texto
original ditado por Deus. A propósito, essa autoria transcendente caracteriza
outros escritos religiosos e afins: Corão, Livro dos Mórmons, Livro dos
Espíritos, entre outros.
A crença é de que as diversas traduções dos textos
originais, sua reescritura, acréscimos e cortes não comprometem a autenticidade
da Bíblia. Destarte, existem atualmente pelo menos três versões diferentes: a
Bíblia católica, a Bíblia evangélica e a Bíblia ortodoxa. As divergências de
forma e conteúdo, todavia, são insuficientes para abalar o dogmatismo cristão.
Ao longo dos primeiros séculos da Igreja Católica, as
chamadas guerras santas foram sangrentas, com perseguições e execuções fratricidas,
tudo pela injunção de um texto único, com uma interpretação convergente. Jesus
é mais humano? Mais divino? Humano e divino ao mesmo tempo? Há outras
possibilidades, como a compreendida pelos judeus, de que Jesus não era o
Messias, ou a de alguns estudiosos sérios, que asseguram a não existência
histórica de Jesus.
A discussão não tem fim, malgrado a inadmissibilidade
para o mundo cristão e a irrelevância para outros mundos.
Ainda sobre a Bíblia, a edição evangélica, por exemplo,
soma 66 livros, 1.189 capítulos e 31.103 versículos. Esses números são
diferentes das demais bíblias. Se a versão primeira foi ditada por Deus, quem
autorizou a supressão de 12 livros em relação à bíblia ortodoxa (mais antiga,
mais próxima da origem)? Os textos suprimidos não se configuram uma afronta ao
seu autor (que era bastante irado no princípio)?
Por
que os pregadores escolhem certos versículos e evitam outros? Por um lado, a fé
é superestimada num contexto imaginário de adoração extrema. Por outro, nenhuma
referência à obra coerente com os preceitos bíblicos.
No dia a dia, fora do templo, a vida de muitos cristãos é
de uma indisfarçável hipocrisia. Basta apenas o versículo 24, capítulo sexto de
Mateus, para escancarar a contradição: “Ninguém pode servir a dois senhores;
porque, ou há de aborrecer-se de um e amar ao outro, ou se devotará a um e
desprezará o outro. Não podeis servir a Deus e às riquezas”.
Obviamente, esse versículo nunca é citado pelos astutos
propaladores da palavra. Ele nega frontalmente a doutrina da prosperidade, nega
a conduta real da maioria cristã, ávida por dinheiro.
SUPERPOPULAÇÃO
Os
otimistas não se impressionam com a superpopulação, não a anteveem como um
problema sério. Diferentemente, desde os anos oitenta, preocupo-me com o
crescimento demográfico.
Bem ou mal, todo o artifício
tecnológico, potencializado de uma forma crescente, tem atendido à demanda de
alimentação. Obviamente, isso ocorre às expensas da sustentabilidade, ou da preservação
do meio ambiente.
Os recursos naturais, independentemente
dos processos para explorá-los, exaurem-se a olhos vistos. As alterações
climáticas são cada vez mais agressivas para o cultivo do solo. Essa prática preexistia
aos sumérios, povo que desapareceu em decorrência de problemas locais,
semelhantes aos que já podem ser observados em âmbito global.
Como alimentar 9,7 bilhões de bocas? Se
tudo correr bem, o que é quase improvável, o número de subalimentados e
famintos crescerá muito, a duplicar ou triplicar os 811 milhões atuais.
A
fome será apenas uma das consequências inevitáveis da superpopulação. Outras
serão factíveis, mais ou menos graves. Não as nomeio aqui em respeito ao
bem-estar do leitor mais sensível.
quinta-feira, 5 de agosto de 2021
TIPO BRASILEIRO
Pero Vaz de Caminha, escrivão
da armada portuguesa que chegou a este continente em 1500, escreveu ao rei D.
Manuel I:
A
terra em si é de muito bons ares... Águas são muitas; infindas. E em tal
maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo, por bem das
águas que tem. Porém o melhor fruto, que nela se pode fazer, me parece que será
salvar esta gente. E esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza em ela
deve lançar. [...] Quanto mais disposição para se nela cumprir e fazer o que
Vossa Alteza tanto deseja, a saber, acrescentamento da nossa santa fé.
Por que cito Caminha?
Não é para trazer à baila a questão dos nativos, que deviam
ser salvos pela doutrina cristã. A primeira coisa que diria a esse respeito é
de que houve uma perdição imposta pela cultura eurocêntrica.
A citação acima serve de mote para analisar meu patriotismo,
o qual se encontra sub judice, nas mãos de um juiz extremamente
(auto)crítico – a própria razão.
No ano 2000, participei de um concurso nacional entre os
universitários, que consistia em escrever uma carta aos portugueses, a
tematizar tudo o que o Brasil tinha de melhor no presente.
Sobre o território brasileiro, descrevi sua multifacetada natureza
geográfica com a minúcia que faltou ao missivista apenas desembarcado de
além-mar. Duas décadas mais tarde, não mudaria uma vírgula da descrição.
O problema está em sua gente. Os índios não foram salvos ao
longo da colonização e da nação independente. Hoje descrevo o povo como um
motivo para repensar meu patriotismo. Mais que representá-lo no poder, os
políticos constituem uma amostra do tipo brasileiro – para o qual não há
salvação.
Mario Quintana foi preciso: “Se eu amo o meu semelhante? Sim. Mas onde encontrar o meu semelhante?”.
segunda-feira, 26 de julho de 2021
FILOSOFIA, PARA QUÊ?
O senso comum pergunta com
frequência, a denunciar a própria ignorância, qual a finalidade da filosofia. Toda
resposta me parece perda de tempo, ainda que filósofos o fizessem desde Pitágoras.
Por que “perda de tempo”? Cito apenas dois motivos: ou as pessoas que perguntam
têm memória fraca, ou falta-lhes o interesse efetivo.
Não bastasse as funções atribuídas à filosofia até o
presente, funções exigidas na própria definição do termo, desenvolvi o
argumento seguinte: o conhecimento de seres, coisas e fenômenos evoluiu para
áreas cada vez mais isoladas umas das outras. Ciências muito próximas em suas
origens, hoje não apresentam uma relação evidente entre si. Cabe à filosofia a
tarefa de relacionar conhecimentos estanques, a partir de um mapa conceitual
centralizado na vida.
A despeito de se assemelhar ao paradigma da complexidade
de Edgar Morin, a ideia acima me ocorreu antes de ler esse pensador francês. Coerente
com esse pensamento, debruço-me sobre os livros de biologia evolutiva, física
teórica, astronomia, psicologia, história, linguística, sociologia, arte (literatura)
e filosofia desde os anos oitenta. Os livros fundamentam o discurso teórica; a realidade,
constituída por seres, coisas e fenômenos, fundamenta a pesquisa de campo.
Clément Rosset escreve em Lógica do pior (1989): “Se há uma tarefa específica da filosofia – e isso independentemente de seus interesses fundamentais, que, mais uma vez, são inteiramente outros –, esta seria a de curar o homem de sua loucura”. Em minha percepção, o homem necessita libertar-se da ignorância.
quinta-feira, 15 de julho de 2021
TUDO PERMITIDO
A noção moral de certo e errado precede o religioso, caso contrário o homem não teria sobrevivido longos milênios antes de pensar a existência da alma transcendente, de Deus e de todos os mitos que constituem as religiões. A organização social em família, clã, tribo e comunidades maiores é uma característica do homo biologicus.
Alguns pensadores da ética, teístas inconfessáveis,
recorrem à frase de Dostoiévski, de que sem Deus tudo seria permitido. Tenho
minhas dúvidas se os citadores de Dostoiévski leram seu Os irmãos Karámazov.
A citação é descontextualizada, tomada como uma afirmação. Na verdade, é uma
pergunta. Mítia narra a Aliocha o diálogo que teve com Ivan (os três irmãos
Karamázov): “Ivan não tem Deus... Eu lhe perguntei: ‘Então, nessas condições,
tudo é permitido?’” (p. 682).
A despeito de Dostoiévski ser um
cristão ortodoxo, não afirma que sem Deus tudo seria permitido. O “sim” da
resposta é um dos pressupostos. Há o “não”. Não li até o presente que se
tudo é permitido, também o é a moralidade sem Deus. Dizer que haveria um
retorno à horda se a não existência de Deus viesse a ser confirmada já reflete
o espírito cristão, propenso a depreciar o homem natural.
quinta-feira, 24 de junho de 2021
A ALMA DA IMPACIÊNCIA
O título acima
é um dos tópicos do capítulo A lenda do humano imaterial, do livro Homo
biologicus, de Pier Vincenzo Piazza (2021). O livro é atraente desde a
primeira página, talvez porque remete o leitor ao paradigma da biologia, que
passou a dominar o mundo científico.
Piazza encanta
por sua ironia cavalheiresca, algo muito raro nestes dias em que prevalece a
grossura deslavada ou a sensibilidade excessiva. Eis a prova disso:
O ato de
fé [...] é a arma inelutável da metafísica religiosa que divide os homens em
duas categorias com capacidades diferentes. Um primeiro tipo de Homo sapiens
possui um sexto sentido que lhe possibilita ver e sentir coisas imateriais
completamente inacessíveis ao segundo tipo de ser humano, que só tem os cinco
sentidos clássicos. O problema é que esse sexto sentido tem a especificidade de
não ser comunicável aos que não o possuem (pp. 28-29).
O que os
humanos de seis sentidos veem (sentem e pensam) não é demonstrável aos de cinco
sentidos, tampouco o é refutável por meio da ciência. Por outro lado, os
humanos de cinco sentidos não conseguem demonstrar que o sexto sentido não
existe. O paradoxo assim se constitui em síntese.
Ante a
dificuldade de se chegar a um acordo, Piazza propõe uma outra formulação do
problema.
Tenho cinco
sentidos, meu amigo diz que tem seis. Se seu sexto sentido não existe, por que ele
está convencido, com toda boa-fé, de que o tem? A única explicação é que precisa
dele. Por quê? Simplesmente para explicar certo número de coisas que não são
possíveis de compreender de outra maneira. Visto assim, o homem de seis
sentidos poderia apenas ser alguém que sente medo ou ansiedade diante da
ignorância. Consequentemente, quando não conhece, ele inventa (p. 29).
A diferença entre
humanos de cinco e de seis sentidos pode significar que uns são pacientes e
outros, apressados. Esta é a grande sacada do autor, que é médico psiquiatra,
com estudo inovador sobre as bases neurofisiológicas da toxicodependência e da
psicopatologia.
Os apressados
respondem suas dúvidas com a imaginação. Os pacientes, ao contrário, admitem a própria
ignorância e vivem com as incertezas (que acabam ser respondidas um dia por
conhecimentos comprovados).
Piazza esclarece
que sua intenção não é negar a fé ou Deus, mas buscar uma resposta para a
origem da “lenda da alma”. Seu livro atende os pacientes, que esperam o
esclarecimento de suas dúvidas; bem como os apressados, que podem retificar o que
viram (sentiram e pensaram) cedo demais.
quarta-feira, 23 de junho de 2021
PANDEMIA: UMA REFLEXÃO
A COVID ainda causará muito sofrimento no mundo, pela perda de pessoas vitimadas por ela. A existência daqueles que se defrontam com a morte de um parente não é mais a mesma doravante. Certamente, essa constitui a mais dolorosa consequência da pandemia.
Outras
constatações, que são leitura dos fatos, evidenciam-se cada vez mais, à medida
que passam os dias. No indivíduo, o âmbito mais restrito, pode-se constatar o
medo e a ansiedade. Ainda não é possível saber para que lado ele seguirá, ou
para o isolamento em si mesmo, egocêntrico, ou para a alteridade, para uma
abertura intersubjetiva.
No âmbito mais abrangente, o das nações
politicamente organizadas, ao mesmo tempo, observa-se o fechamento de
fronteiras, por um lado, e a ajuda internacional, por outro. A regra tem sido o
isolacionismo, com o fito de evitar o inevitável. A exceção é representada
pelos Estados Unidos, com a distribuição gratuita de vacina.
A pandemia coloca à prova a capacidade
do indivíduo de se autocontrolar psicologicamente, sem negar o valor
incomensurável da vida. Da mesma forma, testa a globalização, uma
superestrutura idealizada por todos, mas que se instabiliza ante os interesses
políticos e econômicos de estados nacionais.