terça-feira, 2 de maio de 2023

FUNÇÃO DESMITIFICADORA

A religião na Grécia antiga já entrava em declínio, quando a Filosofia surgiu 2,6 milênios antes do presente. Uma das causas para essa desimportância, não observada noutros lugares (como Suméria e Egito), era a inexistência de uma classe sacerdotal forte. A busca e a determinação dos primeiros filósofos, no sentido de responder pela constituição do cosmos, pouco contribuiu para a desmitificação da realidade. A primeira manifestação desmitificadora coube a Xenófanes, que acusou o antropomorfismo: “Dizem os Etíopes que [os seus deuses] são negros e de nariz chato, fazem-nos os Trácios de olhos azuis e cabelos ruivos” (PENEDOS, 1984, p. 65). Para o filósofo, deus era único e não tinha nada a ver com os humanos, mas acreditava num deus. Com os sofistas, Sócrates, Platão e Aristóteles, o viés cosmológico é substituído pelo antropológico, quando a educação, a política e a ética passaram a constituir uma forma originária de humanismo (como produto extraordinário da razão). A despeito do enfraquecimento da religião, um tribunal democrático (ainda a manter a herança mítica da oligarquia) condenou Sócrates à morte por não ensinar sobre os deuses oficiais – Zeus e toda sua equipe de olimpianos. A morte do mestre levaria Platão a idealizar uma nova paideia, um novo projeto educacional para a formação do homem grego, com especial interesse no filósofo, que estaria habilitado a governar a cidade com justiça. Depois de vinte e poucos séculos, referimo-nos ao elemento fundante da religião grega como o mito simplesmente. Na época, todavia, não havia distinção entre mito e religião: as divindades hoje mitológicas eram vivas, alimentadas pela fé das pessoas daquele tempo e espaço. Essas pessoas rendiam cultos, matavam e morriam por seus deuses, modo de existência representado espetacularmente pelas tragédias de Sófocles, Eurípedes e Ésquilo. A execução de Sócrates constituiu a prova mais conhecida da indistinção referida acima. Anaxágoras e Aristóteles, antes e depois de Sócrates, também sofreram acusações por impiedade ou ateísmo. O primeiro foi banido de Atenas, e o segundo se mudou voluntariamente da cidade, para impedir que ela cometesse uma grande injustiça pela segunda vez. Em seguida, a Grécia foi dominada pelos macedônios e, pouco mais tarde, pelos romanos. A cultura grega, como um todo, sofreu uma debacle. Os mitos religiosos sobreviveram como literatura, e as ideias filosóficas ainda ressurgem de tempo em tempo, sejam nos estoicos romanos, em Agostinho, em Tomás de Aquino, no Renascimento, nos relativistas modernos, enfim, em todo estudante da história do pensamento filosófico. A extinção dos deuses gregos seguiu uma regra determinista observada noutras sociedades, em diferentes épocas. Nestes dias, ninguém mais crê na existência de Innana, Enlil, Ra, Osíris, Odim, Thor, El, Baal, Tezcatlipoca, Xólotl, Tupã, Guaraci, entre outras divindades cultuadas no passado, acreditadas como se fossem efetivamente reais. Há exceções, obviamente, como aqueles deuses ainda cultuados nas diversas sociedades em volta do planeta (hoje agrupadas em grandes blocos mais ou menos definidos como Oriente e Ocidente). Uma dessas exceções consiste num deus surgido no deserto, do fogo e da tempestade, à semelhança de Seth, Zeus, Thor, Tupã, entre outros que controlavam o raio. Nas sociedades primitivas, o raio e o trovão causavam muito medo nas pessoas, que os associavam a um poder sobrenatural personificado. Por isso, a semelhança entre as criaturas antropomórficas em lugares distintos. A região em que esse deus foi alimentado por seguidores era Midiã, ao noroeste da atual Arábia Saudita. O destino desse deus midianita sequer imitaria os demais caso não passasse por Midiã um líder religioso, que casaria com a filha do patriarca local (Ex 2:16-21). Ao invés do esquecimento, o deus local foi levado para a terra de Canaã (uma obsessão imigratória desde Abraão). Depois da morte obscura de seu fiel mais importante (Deu 34:5), o deus do deserto passa a concorrer com deuses mais antigos, cultuados desde a vinda dos imigrantes caldeus, os quais colonizaram a chamada “terra prometida”. Por fatores não registrados ou ocultos da história, El e Baal foram subsumidos evolutivamente pelo deus então transformado em único, porque o novo reino assim o exigia. Seu nome: Javé. A lacuna ainda não inteiramente esclarecida, em razão da falta de dados historiográficos, consiste justamente nessa unificação das divindades, como requisito indispensável para a construção do templo de Jerusalém. A grande criação do monoteísmo, a qual tanta glória é atribuída aos judeus, passa pelo momento em que uma decisão protocolar empodera Javé como deus único, senhor do Universo. O nome que o identificava anteriormente é substituído aos poucos por denominações mais afetivas e universais, como simplesmente deus, senhor, pai. A classe sacerdotal extremamente forte, em Jerusalém e em Roma (Vaticano), bloqueou qualquer intervenção racional, filosófica ou científica. Fundantes de duas grandes religiões do mundo, os mitos judaico-cristãos são tidos como histórias verdadeiras. Assim continuará, enquanto houver organizações religiosas em torno da crença e pessoas que se filiam a tais organizações. Todo o efeito desmitificador das ideias ou descobertas de um Feuerbach, de um Darwin, de um Nietzsche, de um Freud, entre outros, ainda não foi suficiente para determinar o fim de uma grande ilusão. REFERÊNCIA Bíblia. Português. Bíblia Sagrada. Tradução dos originais dos Monges de Maredsous (Bélgica). – 28ª ed. – São Paulo: Editora Claretiana, 1980. PENEDOS, A. J. Introdução aos pré-socráticos. Porto-Portugal: Rés-Editora Lda, 1984.

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