quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019

SÍSIFO CONTEMPORÂNEO: O HOMEM SECULARIZADO


        O homem contemporâneo, a exemplo de seus ascendentes antigos, medievais e modernos, continua a temer a morte. Nesse aspecto, ele ainda pode personificar Sísifo – malgrado saber que o alongamento provisório de sua vida se fará com mais cansaços e aflições.
            Toda tecnologia na área da medicina evolui com o propósito de prender Thanatus em algemas (cada vez mais seguras). No manuseio de ferramentas avançadas, o homem crê, pensa e age ainda motivado pelo mito de sua própria imortalidade, lembrado por Freud no ensaio A nossa atitude diante da morte (1915).
            Na empresa bilionária para alcançar a longevidade neste mundo, desponta um megaprojeto, o Google Baseline Study, que pretende desenvolver a “saúde perfeita”. Segundo Harari,

se dermos ao Google e seus competidores acesso livre a nossos dispositivos biométricos, às varreduras de nosso DNA e a nossos registros médicos, vamos obter daí um serviço médico e de saúde onisciente, que não só combaterá epidemias, como nos blindará contra o câncer, ataques cardíacos e o Alzheimer (p. 338).

        Com base no desenvolvimento exponencial de novas tecnologias (e na produção de algoritmos específicos), o professor da Universidade Hebraica de Jerusalém adianta que futuramente, incorporaremos “uma legião de dispositivos biométricos, órgãos biônicos e nanorrobôs, que vão monitorar nossa saúde e nos defender de infecções, doenças e danos”.
            Neste mundo que se torna cada vez mais no melhor dos mundos possíveis, na medida em que o processo de secularização demonstra ser único, a morte se apresenta em toda sua potência trágica. Ela retarda um pouco sua vinda, todavia, não se deixa enganar por algum estratagema humano.
            Com a desmitificação da vida, o homem perde a capacidade de ludibriar a visitante indesejada – uma tentativa realimentada pelo mito que subsiste ainda. Os deuses, tampouco, ouvirão suas súplicas, uma vez que, diferentes da morte inexorável, já não existem mais.
            O peso dessas verdades constitui o castigo autoimposto pelo homem secularizado, uma imanência que o faz mais heroico e trágico do que Sísifo.

HARARI, Yuval Noah. Homo Deus: uma breve história do amanhã; tradução Paulo Geiser. 1ª ed. – São Paulo: Companhia das Letras, 2016, pp. 338 e 347.

Disponível em

Disponível em https://www.companiadasletras.com.br/trechos/12900.pdf. Acesso em: 19 de fevereiro de 2019.  

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