No verão, não ouvimos o estrídulo desesperado da cigarra macho. Certamente, isso não ocorre porque o espécime homóptero desapareceu sob a soalheira da tarde (sem encontrar a fêmea correspondente), mas porque, para ouvi-lo, não temos mais o sentido suficientemente apurado. Não temos mais o que nossos antepassados tinham no mais alto grau.
A mente destes dias passa a sofrer de uma perda crescente de sensibilidade, causada pelo barulho que fazemos artificiosamente. Isto mesmo! Nosso dia a dia é movido pelo artifício, o grande paradigma que nos distancia das vozes da Natureza.
O estrídulo da cigarra é apenas uma dessas vozes, entre milhares de outras (desde a emitida por um simples inseto à música das esferas).
A nossa surdez é um fato.
À exceção do relógio, que tiquetaqueia em algum lugar da casa, e do sino da Matriz, que marca o meio-dia e a Hora do Ângelus, tudo mais agride pela falta de ritmo. Ouvimos das coisas seus descompassos, seus ruídos pela forma aleatória com que se arranjam no tempo e no espaço.
Ouvimos do coração sua arritmia, não o ritmo natural. Por isso, os versos que produzimos são tão ruins, a despeito de reivindicarmos a condição de poeta. Por isso, os nossos desejos e frustrações ocorrem com a mesma intensidade e revelia - sístole e diástole de um individualismo que beira a enfermidade.
Não apenas apresentamos problemas de audição, mas também de memória (efetiva e afetiva), a ponto de nos esquecermos do outro, ainda que ele seja nosso pai num asilo, ou nosso filho fechado num automóvel.
A primeira prova dessa verdade consiste em não ouvirmos o estrídulo desesperado da cigarra macho no verão.
(Do meu livro Palavras de fogo, página 73)
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