quinta-feira, 16 de agosto de 2012

FRAGMENTO 48

"Conhecimento da miséria - Talvez nada mais separe agora as pessoas e épocas a não ser seu grau de conhecimento da miséria: tanto da alma como do corpo. Relativamente a esta última, talvez nós, homens de hoje, apesar de nossas fraquezas e enfermidades sejamos ignorantes e fantasistas, por falta de experiência pessoal, a experiência que teve a idade do medo - mais prolongado período da história - quando o indivíduo devia autoproteger-se contra a violência e tornar-se para esse fim um violento. Nessa época o homem aprendia intensamente o sofrimento físico e a privação; via até no exercício de certa crueldade para consigo mesmo e no sofrimento voluntário, meio necessário à sua conservação; treinava-se então seu ambiente a saber suportar o mal, aumentando-o de bom grado até os piores sofrimentos de outrem eram vistos sem nenhum sentimento além daquele da própria segurança.
"Quanto à miséria da alma, continuo a examinar se aquele que dela fala a conhece por experiência ou por leitura; se julga simular o conhecimento dessa miséria uma necessidade para testemunhar certa cultura ou se as profundezas de sua alma se recusam a acreditar totalmente em qualquer sofrimento moral; se, quando esses sofrimentos são designados não se passa nele qualquer coisa de análogo ao que acontece quando lhe relatam grandes sofrimentos físicos: recordam-lhe suas dores de dente e do estômago. Parece-me que a maior parte das pessoas sente dessa forma. Ninguém mais é treinado no sofrimento, nem físico, nem moral, ninguém vê uma pessoa sofrer a não ser raramente, muito raramente, de onde se infere uma consequência muito importante: o sofrimento é mais odiado agora que antigamente, dele se fala mais coisas más do que nunca, e chega-se mesmo a não se lhe suportar a ideia; disso se faz questão de consciência e censura à existência, em sua totalidade. O florescimento de filosofias pessimistas não é de modo algum indício de terríveis sofrimentos; pelo contrário, essas interrogativas acerca do valor geral da vida são feitas em tempos em que o conforto e a facilidade acham demasiado cruéis, excessivamente sangrentas picadelas de mosquitos que não podem ser evitadas nem ao corpo nem à alma e queriam, na penúria de autênticas experiências dolorosas, fazer aparecer a imaginação do suplício como sofrimento de espécie superior.
"Um remédio poderia realmente ser indicado contra as filosofias pessimistas e o excesso de sensibilidade que me parecem ser a verdadeira 'miséria dos tempos atuais'... talvez esta receita parecesse demasiado cruenta. Haveriam de classificá-la, sem dúvida, no número dos sintomas em que se baseiam agora para considerar 'a vida é um mal'. Seja! O remédio contra a 'miséria' chama-se 'miséria'."
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O fragmento acima é de uma sabedoria poucas vezes expressa com tão brilhante estilo em A gaia ciência, de F. Nietzsche. Penso que as  "filosofias pessimistas" constituem uma miséria em acelerado processo de extinção. Ao contrário do "excesso de sensibilidade", que considero uma epidemia a debilitar a saúde de nossa civilização. 

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