– Minha bisavó fugiu de
casa há cem anos. Para ser mais preciso, há cento e poucos anos. Cem anos fazia
na primeira vez que calculei há quanto tempo ela havia fugido de casa. De lá
para cá, passaram-se oito anos. Nas outras vezes, os cem anos redondos eram
suficientes. Não mais agora.
A Cristina me pergunta qual é a importância do tempo na
história de minha bisavó.
– É importante. Antes dos cem anos, sua história era o
escândalo da família. Depois dos cem, cento e poucos, caiu no domínio
literário, pronto para ser narrado como um conto de aventura.
Afinal, a vida imita a arte.
– Num belo dia – para quem? – Fermina criou asas na ponta do
coração. Enquanto o marido trabalhava na costa do rio, deixou os dois filhos
pequenos sozinhos, montou a cavalo e desapareceu por vinte e cinco anos.
– Vinte e cinco anos?!
A Cris está ansiosa.
– Ela fugiu com quem?
– Nos cochichos de domingo à tarde, na casa do vovô,
permitia-se uma resposta curta e fantasiosa: a bisavó fugiu com um mascate.
Não. O mascate era um subterfúgio para o silêncio. A menina que fora abandonada
pela mãe aos três anos de idade transformara-se na anfitriã das reuniões de
domingo. O assunto era tabu, cuja violação provocava a ira do vovô. Tia Cela me
contou antes de falecer quem foi o rapaz que levou minha bisavó. Ele também era
casado, morador do Rincão. Vi sua foto na casa do irmão ainda vivo, que nada me
falou, em razão da idade avançada e do Alzheimer.
– O senhor me diz que eles fugiram a cavalo...
– A bisavó saiu de casa a cavalo. Alguém a viu no dia da
fuga. Essa foi a única informação dada ao desesperado e infeliz do meu bisavô.
Após seu retorno da lavoura, Antônio a procurou noite adentro, enquanto Fermina
fugia madrugada afora rumo a Cruz Alta. Ele esperava encontrá-la a qualquer hora,
dia, semana, mês e ano. Em sonho, acordou algumas vezes com a volta da mulher.
A ferida aberta de alto a baixo em sua alma cicatrizou com o tempo, como uma
rocha amalgamada ao corpo.
– Por que ela fugiu?
– Querida, agora estás me perguntando muito. Um conto
consegue responder pelo quando e, não
satisfatoriamente, pelo como. Um
romance inteiro é necessário para responder por quê. Um romance rico em
imaginação. Os dados de referência são escassos, com fontes não confiáveis (do
tipo diz-que-diz-que). Não se trata de transpor metaforicamente a realidade,
mas de recriá-la a partir de outros elementos da narrativa.
A grande oportunidade de se saber por que minha bisavó fugiu
com outro, disso tenho certeza, foi perdida com a visita que ela fez à filha
vinte e cinco anos mais tarde. Tia Cela tinha cinco anos de idade, quando
aconteceu essa visita. Ao ver o avô chegar do campo, correu ao seu encontro
para dar-lhe a notícia. Antônio já desencilhara o cavalo no momento em que a
neta perguntou-lhe para adivinhar quem estava na casa. A menina disse-lhe o
nome sem esperar pela resposta. Ato contínuo, ele tornou a encilhar o animal,
pisou no estribo, alçou a perna, montou em seu cavalo e saiu para o campo outra
vez.
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