segunda-feira, 17 de novembro de 2014

QUANDO COMO POR QUÊ?

– Minha bisavó fugiu de casa há cem anos. Para ser mais preciso, há cento e poucos anos. Cem anos fazia na primeira vez que calculei há quanto tempo ela havia fugido de casa. De lá para cá, passaram-se oito anos. Nas outras vezes, os cem anos redondos eram suficientes. Não mais agora.
         A Cristina me pergunta qual é a importância do tempo na história de minha bisavó.
         – É importante. Antes dos cem anos, sua história era o escândalo da família. Depois dos cem, cento e poucos, caiu no domínio literário, pronto para ser narrado como um conto de aventura.
         Afinal, a vida imita a arte.
         – Num belo dia – para quem? – Fermina criou asas na ponta do coração. Enquanto o marido trabalhava na costa do rio, deixou os dois filhos pequenos sozinhos, montou a cavalo e desapareceu por vinte e cinco anos.
         – Vinte e cinco anos?!
         A Cris está ansiosa.
         – Ela fugiu com quem?
         – Nos cochichos de domingo à tarde, na casa do vovô, permitia-se uma resposta curta e fantasiosa: a bisavó fugiu com um mascate. Não. O mascate era um subterfúgio para o silêncio. A menina que fora abandonada pela mãe aos três anos de idade transformara-se na anfitriã das reuniões de domingo. O assunto era tabu, cuja violação provocava a ira do vovô. Tia Cela me contou antes de falecer quem foi o rapaz que levou minha bisavó. Ele também era casado, morador do Rincão. Vi sua foto na casa do irmão ainda vivo, que nada me falou, em razão da idade avançada e do Alzheimer.
         – O senhor me diz que eles fugiram a cavalo...
         – A bisavó saiu de casa a cavalo. Alguém a viu no dia da fuga. Essa foi a única informação dada ao desesperado e infeliz do meu bisavô. Após seu retorno da lavoura, Antônio a procurou noite adentro, enquanto Fermina fugia madrugada afora rumo a Cruz Alta. Ele esperava encontrá-la a qualquer hora, dia, semana, mês e ano. Em sonho, acordou algumas vezes com a volta da mulher. A ferida aberta de alto a baixo em sua alma cicatrizou com o tempo, como uma rocha amalgamada ao corpo.
         – Por que ela fugiu?
         – Querida, agora estás me perguntando muito. Um conto consegue responder pelo quando e, não satisfatoriamente, pelo como. Um romance inteiro é necessário para responder por quê. Um romance rico em imaginação. Os dados de referência são escassos, com fontes não confiáveis (do tipo diz-que-diz-que). Não se trata de transpor metaforicamente a realidade, mas de recriá-la a partir de outros elementos da narrativa.
         A grande oportunidade de se saber por que minha bisavó fugiu com outro, disso tenho certeza, foi perdida com a visita que ela fez à filha vinte e cinco anos mais tarde. Tia Cela tinha cinco anos de idade, quando aconteceu essa visita. Ao ver o avô chegar do campo, correu ao seu encontro para dar-lhe a notícia. Antônio já desencilhara o cavalo no momento em que a neta perguntou-lhe para adivinhar quem estava na casa. A menina disse-lhe o nome sem esperar pela resposta. Ato contínuo, ele tornou a encilhar o animal, pisou no estribo, alçou a perna, montou em seu cavalo e saiu para o campo outra vez. 

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