O conto Os vizinhos, de Mia Couto, tem um enredo interessante, a servir de
alegoria na descrição de um problema que se agrava em nossa sociedade, em
(des)razão do individualismo radical e da dualidade ideológica (insuflada pela
chamadas fake News).
Na impossibilidade de transcrever o conto todo, publicado no
livro Na berma de nenhuma estrada,
cito o primeiro parágrafo:
As famílias se davam,
cordiais, uma e sabugo. Não havia dia que não trocassem favores, emprestassem
alegrias, esmiudaçassem conversa. Aquilo era como se não houvesse paredes. Ou
que não tivessem ouvidos: digamos que uma família única distribuída em duas
casas (p. 151)
As duas famílias partilhavam do mesmo cão de
guarda. Os filhos se namoriscavam, a trocarem bilhete no começo e travesseiro
mais adiante.
Tudo ia muito bem, “até que começaram as notícias”. A
televisão insistia em conflitos étnicos, coisa que as famílias não sabiam muito
bem. Todavia, “as notícias se adensaram como as nuvens de novembro”. Todos já
sabiam o que significava étnico. Não bastassem os aspectos rácicos, com
variantes religiosas, as notícias falavam em conflito.
O noticiário acabava em discussão, o que justificou a não
mais verem em comum a televisão.
Um dia, o vizinho da esquerda bateu à porta do outro, a
perguntar-lhe: “Desculpe, vizinho, mas você tem raça?”. O outro respondeu que
sim. Não lhe disse que se tratava da outra raça, verdadeiramente pura, para
evitar mal-entendido. Mesmo assim, complementou que em sua casa já comentavam
sobre a etnia do outro.
O terceiro passo foi o de as portas se
fecharem uma para outra (como metáfora dos próprios corações).
O narrador comenta que “ninguém lhes deu essa ordem de
separação”. O noticiário os condicionava a ela. Os dois lados se perguntavam
como foram amigos anteriormente. A religião de cada família era diferente.
A distância foi dando
lugar ao ódio. E à convicção de que a culpa dos males mundiais residia ali ao
lado. Desgraças passadas e futuras só tinham uma única e fácil explicação: os
outros, ali à mão de serem condenados (p. 153)
Até que um dos vizinhos resolveu matar o seu próximo. No
escuro, com a arma na mão, prestes a atacar o outro, sofreu o ataque do cão. O
vizinho que seria atacado se virou e, não reconhecendo a ação agressiva, achou
interessante retomar uma conversa com o outro. Os dois gostaram do reencontro e
combinaram alternar os passeios com o cão nas noites próximas.
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