quinta-feira, 10 de outubro de 2019

MORAL CONSTITUÍDA E MORAL CONSTITUINTE


       O aspecto mais interessante no estudo da moral é a contradição entre o que foi estabelecido como norma de conduta e a sua transgressão sistemática.
A primeira explicação para compreender a relação norma–desobediência é genealógica: aquilo que se consubstancia como desobediência vem antes da instauração normativa, não o contrário.
A prática de matar o próprio semelhante (quase exclusiva do homo sapiens), por exemplo, precede a todo estatuto que preceitua o não matar. O assassinato, ainda que esporádico, desde sempre exigiu sua negação como norma para o bem da sociedade, do clã à humanidade como um todo. Apenas a guerra rompe com o direito natural à vida.
Em todas as culturas em que os homens mentem, há necessidade de se impor normativamente o não mentir. No âmbito jurídico, a prática adquire denominações eufemísticas, como falta com a verdade, falso testemunho, crime de perjúrio etc. Mentiras que podem sofrer sanções, em razão dos danos causados ao outro (pessoa ou instituição).
Notadamente, assassinato e mentira são incomparáveis pela gravidade do mal que causam um e outra. Ao matar seus semelhantes numa guerra, o homem mente a si mesmo sobre certos perigos que corre ele, os parentes, amigos e compatriotas se não tomar a iniciativa.
Duas morais são possíveis em relação à mentira: a constituída e a constituinte. A primeira consiste na norma expressa, de que o homem deve falar a verdade e somente a verdade (como num juramento legal). A segunda não está posta, flerta com a verdade, permissiva, muito próxima do engano consentido (bem como do autoengano).
Os exemplos da moral constituinte são tão numerosos quanto às intenções e aos discursos que permeiam as relações interpessoais. O simples “bom dia!” num ambiente de trabalho, onde a concorrência para subir dentro da empresa é acirrada, encobre maledicência, inveja, ódio. Nas redes sociais, a interjeição “linda!” sob a selfie não parece plenamente honesta. O incitamento do pastor aos fiéis para que estes abram suas carteiras, além do dízimo, justifica que assim é a vontade de Deus. Ad nauseam.
Algumas mentiras ganham estatuto de verdade, quando não é possível a omissão, o silêncio. Elas são necessárias para viabilizar o entendimento, elevar a autoestima, lucrar com o negócio, manter o relacionamento etc. O nome dessas permissividades é moral constituinte.

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