terça-feira, 23 de julho de 2019

LIÇÃO INESQUECÍVEL



         A recomendação insistente dos pais de que o fogo queima não é levado a sério pela criança, pelo menos a ponto de evitar a primeira queimadura autoprovocada por ela. O conhecimento de mundo transmitido de uma forma teórica, discursiva, via de regra, apenas se efetiva com a experiência pessoal.
         Até os quatorze anos, cansei de ouvir dos adultos que era feio roubar, aliás, um dos dez mandamentos bíblicos já preceitua a moral correta “não roubarás”. Com a idade acima, roubei um cadeado grande, novo, amarelo como o ouro, que se encontrava aberto no portão lateral de uma casa momentaneamente vazia.
         Naquele ano de 1973, vendia doce para minha tia. A casa em que morávamos na Francisco Brandão distava meio quilômetro da zona do meretrício. Não ganhava troco algum por esse trabalho, uma vez que tinha obrigação para com os parentes que me hospedavam na cidade. Caso quisesse ir ao Cinema Imperial no domingo (para ver filme de faroeste), obrigava-me a vender garrafa nos botecos da Bento Gonçalves.
         A zona constituía o mercado certo para o pudim de pão que eu mal equilibrava numa bandeja de lata. No meio da tarde, as prostitutas me compravam toda a oferta, enquanto se embelezavam para outro comércio na próxima noite.
         No dia do roubo, a casa da Gringa arejava sozinha, não respondendo minhas palmas na porta da frente. Ao contorná-la pelo lado, eis que a ocasião se oferece ao menino do interior, dotado até então de um caráter impoluto.
Com certa dificuldade, guardei o objeto em meu bolso. Em casa, escondi-o dentro da malinha de papel, sob as roupas dobradas. Na verdade, roubara algo que não usaria certamente. Assim que retornei da escola no outro dia, um dos primos veio ao meu encontro com a pergunta avassaladora “Onde você escondeu o cadeado?”. O rubor tingiu meu rosto branquelo antes que balbuciasse qualquer coisa muito próxima da confissão. Ele disse mais: “A mulher está esperando por você, vai lá para devolver-lhe o cadeado”.
         De repente, o mundo ficou pequeno ante a vergonha que tomou conta de mim. Alguns riam, outros fechavam o cenho ao me verem naquela situação embaraçosa ao extremo. A saída menos desonrosa foi devolver o cadeado para sua dona.
         Trêmulo como uma vara verde, pedi-lhe desculpas. Em seguida, Gringa me dirigiu um sermão sobre não roubar mais, cujo conteúdo moral passou a constituir minha personalidade doravante. Ela flagrara minha ação reprovável de outra casa, e só não registrou um Boletim de Ocorrência por compaixão. Sua filha, disse-me ela, era minha colega de aula, onde talvez sofresse constrangimento ainda maior, a ponto de dar outro rumo à minha vida. Ela manteve a discrição. Uma pessoa que gostaria de reencontrá-la já velhinha nestes dias.
         A experiência foi como um fogo que me marcasse o ser para a vida toda. Nunca mais peguei às escondidas o que pertencesse aos outros. Com um comportamento assim orientado, desenvolvi uma ojeriza pelos ladrões contumazes, do assaltante à mão armada ao político corrupto e corruptor.

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