sexta-feira, 12 de julho de 2019

AZULÍSSIMA E FRIA


O Bom Retiro pranteia a morte de uma pessoa muito estimada pela comunidade. A igreja se torna pequena para abrigar todos os presentes ao rito cristão da despedida. O sino bate repetidamente três vezes, enquanto a tarde cai azulíssima e fria.
         Durante o velório, uma hora atrás, deixei o salão e fui ao cemitério. (Não sei explicar este gosto de visita-lo sem a presença dos vivos.) O vento farfalhava as árvores debruçadas sobre o muro tomado de limo, para quebrar a mudez sepulcral que envolvia túmulos e vias de pedra grês. Outra vez, vi todas as fotos em sépia dos falecidos nos últimos setenta anos (desde a construção do cemitério). Mais que ver, li o nome e as datas de início e fim da vida de cada um.
         O primeiro ato de minhas reflexões, entre um sepulcro e outro, resumia-se a recordar como eram as pessoas ali fotografas em seu tempo. Caso não as tivesse conhecido, num segundo ato, pensar no que fizeram em vida, na causa de morrerem mais cedo (algumas) Mesmo não as conhecendo outrora, num terceiro ato, concluir que os dados biográficos (impressos na louça) são um ponto em que se apoia a lembrança de seus parentes. Fotos e datas constituem agora o único registro contra o esquecimento inexorável.
         No fim da avenida central (que começa no portão de entrada), encontro o túmulo de alguém que me é muito especial. Nesse momento, a racionalidade cede lugar à emoção, o filósofo volta a ser gente sensível, e meus olhos manam uma dor que persiste depois de treze anos. As rosas artificiais me parecem demasiadamente tristes para enfeitar o nicho com a foto da minha mãe. Ela gostava tanto de flores naturais.
         O cortejo deixa a igreja, segue pela estrada a rezar o Terço. O cemitério o espera com o portão aberto. O vento continua a violar o silêncio da tarde – azulíssima e fria.

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