Os
últimos cem anos registram uma transformação social, econômica e cultural no
Rincão dos Machado, que servem como amostra de aspectos comuns à evolução de
toda a história humana. Sem reduzir o universal à minha aldeia (como o sugeriu
Leon Tolstoi), esclareço a sentença acima com a referência de quem esteve
presente no torvelinho de algumas mudanças.
Há um século, o rincão não passava de
um espaço devoluto, fundo de uma fazenda gigantesca, onde o gado vivia como
bicho bravio. Uma relação escassa de artifícios, como um forno de pedra, um
palanque de cerne de angico, uma taipa na restinga e pouco mais, atesta a
presença de dois ou três moradores antigos. Mais conhecidos do Epa(minondas),
eles pertenceram a uma época anterior. Dessa forma, a chegada de Firmino
Machado, à frente de sua família numerosa, demarca o início da ocupação efetiva
do rincão – feito que se repete desde as primeiras comunidades agrícolas.
O vínculo consanguíneo fortaleceu a
unidade moral do clã dos Machado, cuja autoridade maior era Firmino, pai, avô,
bisavô, irmão, cunhado, tio, ascendente de quem estabeleceu novas famílias na
localidade. Todos o respeitavam sem a necessidade de sua palavra resoluta,
nunca opressora. Esse sistema social também remonta às comunidades primitivas,
que dependiam de deveres (e valores) para sobrepor-se aos excessos pulsionais
de seus integrantes mais jovens.
O vô Firmino trabalhava muito, como o
exigia todo pioneirismo fundador. O domingo, todavia, ele reservava ao
descanso, quando mais se cansava atrás de veado em suas terras e no outro lado
do rio. A propósito, esse instinto de caçador obedecia ao gene moldado
evolutivamente ao longo do Paleolítico. Alguns anos depois de sua morte, o
Rincão dos Cervos ganhou a denominação toponímica hoje conhecida: Rincão dos
Machado.
As casas no rincão eram construídas com
a madeira tirada no mato nativo, que cobria encostas e várzeas à beira do
Rosário. Os alimentos postos à mesa resultavam do trabalho duríssimo de todos
por meses a fio, com o preparo da roça, plantio, limpeza e colheita. A
tecnologia disponível em pouco se distinguia da empregada por agricultores
sumérios: foice, arado pula-toco, cavadeira, enxada, braço, sangue e suor.
Entre o Tigre e o Eufrates, produzia-se com a ajuda da água (trazida por um
sistema de irrigação); no rincão, necessitava-se do fogo (controlado por
aceiros).
O trigo representava a base da
agricultura: uma parte atendia ao consumo de subsistência, e a outra excedente transformava-se
em moeda de troca. Mais tarde, a planta passou a cair de rendimento, o que
forçou a sua substituição pela soja. Logo o mercado mundial fez desse feijão
exótico (no rincão) uma commodity. O
trator tomou o lugar dos bois de canga. O campo limpo, antes exclusivo para a
criação, fez-se lavoura. A produção quintuplicou, para o regozijo de todos.
Acertadamente, o rincão não abandonou o plantio do feijão tradicional, do milho,
da mandioca, de frutas e verduras diversas.
A tecnificação agrícola e a eletricidade
(que chegou tardiamente em meados dos anos oitenta) são responsáveis pela nova
fisionomia do rincão, a arrancá-lo do estágio agrário em que foi gestado
social, econômica e culturalmente. Ele ainda passa por um processo de
urbanização, de globalização, malgrado o número reduzido de habitantes. Alguns
Machado, que foram embora antes dessa transformação radical, hoje recordam o
rincão perdido no tempo, paraíso bárbaro da infância.
As mudanças ocorrem num fluxo que se acelera
continuamente. Depois da sua revolução industrial, o rincão passa a se conectar
com a Internet. Nos próximos cem anos, tudo poderá acontecer de uma forma casual
ou determinada, como o despovoamento humano, acerca do qual o rincão também representa
uma amostra.
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