ERRO MILENAR
O mundo em que vivemos é o melhor dos
mundos possíveis, não obstante o esforço humano de torná-lo o pior dos mundos
possíveis. A esse pensar e fazer o pior dos mundos possíveis, que ninguém antes
de Nietzsche percebeu tratar-se do verdadeiro niilismo, inclui-se a divisão
entre corpo e alma.
Na Antiguidade, em torno de dois
milênios e meio antes do presente, Platão filosofava sobre a existência e a
imortalidade da alma – inteligível, perfeita e divina. O corpo, ao contrário,
não passava de um “acidente exterior”, que deveria ser adequado por intermédio
da ginástica a hospedar sua antípoda ilustre. A aproximação entre ambos era
provisória. Uma vez que o corpo pertencia ao sensível, uma sombra no fundo da
caverna. Platão instaura o dualismo.
Na Idade Média, o corpo foi desprezado,
flagelado e, com a Inquisição, queimado em praça pública pela Igreja Católica.
Grande obstáculo para a vida ascética, o corpo era tido como a prova material
do pecado. A alma que não aprendesse a dominá-lo arderia eternamente no
inferno. A dualidade criada por Platão ganhou uma interpretação mística no
neoplatonismo e se consagra como dogma nas religiões cristãs.
A modernidade começa com Descartes ao
propor um método seguro para conhecer a verdade: a dúvida. O filósofo
racionalista começa bem, como um pirrônico tardio. Todavia, ele logo chega à
primeira certeza, o “cogito ergo sum” (“penso, logo existo”). A partir da
constatação indubitável do eu pensante, a racionalidade conclui que o
pensamento não necessita de uma extensão no espaço, de uma experiência
sensorial, de um corpo. Nesse aspecto, há um retrocesso a Platão. Corpo e alma
são substâncias diferentes, sem relação uma com a outra (exceto pela mediação
da glândula pineal). O corpo é uma máquina, que se desgasta e chega ao fim. A
alma é imortal.
Na contemporaneidade, o corpo começa a
recuperar sua importância perdida com o discurso de Zaratustra de Nietzsche:
“Corpo sou eu inteiramente, e nada mais; e a alma é apenas uma palavra para um
algo do corpo”. A crítica nietzschiana à fé e à razão ao mesmo tempo vem ao
encontro do processo secular, que está em curso com o propósito de assegurar um
mínimo de sensatez à civilização ocidental.
A separação entre corpo e alma criou um
desajuste com consequências duradouras para a saúde do homem. O corpo, por sua
vulnerabilidade natural aos males, foi desde cedo estudado pelas ciências
médicas. Muitas doenças foram evitadas ou curadas, e muitos órgãos foram
operados ou transplantados, a propiciar uma vida mais longa, com maior
qualidade. A alma era imortal, acreditava-se desde dois milênios e meio antes
do presente. Essa crença justifica de uma forma indireta o surgimento de
algumas doenças, como a ansiedade e a depressão.
O corpo e a alma se amalgamam em tempo pós-moderno,
quando necessitamos repensar este mundo e refazê-lo o melhor dos mundos
possíveis. Talvez ainda não seja tarde para uma realização tão extraordinária.
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