segunda-feira, 17 de junho de 2019

CORPO E ALMA


ERRO MILENAR

         O mundo em que vivemos é o melhor dos mundos possíveis, não obstante o esforço humano de torná-lo o pior dos mundos possíveis. A esse pensar e fazer o pior dos mundos possíveis, que ninguém antes de Nietzsche percebeu tratar-se do verdadeiro niilismo, inclui-se a divisão entre corpo e alma.
         Na Antiguidade, em torno de dois milênios e meio antes do presente, Platão filosofava sobre a existência e a imortalidade da alma – inteligível, perfeita e divina. O corpo, ao contrário, não passava de um “acidente exterior”, que deveria ser adequado por intermédio da ginástica a hospedar sua antípoda ilustre. A aproximação entre ambos era provisória. Uma vez que o corpo pertencia ao sensível, uma sombra no fundo da caverna. Platão instaura o dualismo.
         Na Idade Média, o corpo foi desprezado, flagelado e, com a Inquisição, queimado em praça pública pela Igreja Católica. Grande obstáculo para a vida ascética, o corpo era tido como a prova material do pecado. A alma que não aprendesse a dominá-lo arderia eternamente no inferno. A dualidade criada por Platão ganhou uma interpretação mística no neoplatonismo e se consagra como dogma nas religiões cristãs.
         A modernidade começa com Descartes ao propor um método seguro para conhecer a verdade: a dúvida. O filósofo racionalista começa bem, como um pirrônico tardio. Todavia, ele logo chega à primeira certeza, o “cogito ergo sum” (“penso, logo existo”). A partir da constatação indubitável do eu pensante, a racionalidade conclui que o pensamento não necessita de uma extensão no espaço, de uma experiência sensorial, de um corpo. Nesse aspecto, há um retrocesso a Platão. Corpo e alma são substâncias diferentes, sem relação uma com a outra (exceto pela mediação da glândula pineal). O corpo é uma máquina, que se desgasta e chega ao fim. A alma é imortal.
         Na contemporaneidade, o corpo começa a recuperar sua importância perdida com o discurso de Zaratustra de Nietzsche: “Corpo sou eu inteiramente, e nada mais; e a alma é apenas uma palavra para um algo do corpo”. A crítica nietzschiana à fé e à razão ao mesmo tempo vem ao encontro do processo secular, que está em curso com o propósito de assegurar um mínimo de sensatez à civilização ocidental.
         A separação entre corpo e alma criou um desajuste com consequências duradouras para a saúde do homem. O corpo, por sua vulnerabilidade natural aos males, foi desde cedo estudado pelas ciências médicas. Muitas doenças foram evitadas ou curadas, e muitos órgãos foram operados ou transplantados, a propiciar uma vida mais longa, com maior qualidade. A alma era imortal, acreditava-se desde dois milênios e meio antes do presente. Essa crença justifica de uma forma indireta o surgimento de algumas doenças, como a ansiedade e a depressão.
         O corpo e a alma se amalgamam em tempo pós-moderno, quando necessitamos repensar este mundo e refazê-lo o melhor dos mundos possíveis. Talvez ainda não seja tarde para uma realização tão extraordinária.

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