"Dizer que o marxismo era uma religião de salvação terrestre, sem dúvida, não estava errado. E é verdade que as grandes utopias deram, durante décadas, sentido à vida dos indivíduos - tanto aos que nela acreditavam, por acreditarem, quanto aos que as combatiam, por combatê-las. Cada qual podia, então, ter seus objetivos e, com isso, situar sua ação dentro de um quadro significante. E ainda seria preciso perceber com clareza em que as diversas variantes do comunismo não puderam fornecer sentido senão graças a uma autêntica estrutura religiosa, hoje em dia revogada: implicavam, mesmo em suas versões materialistas mais bem secularizadas, a ideia de um 'além' da vida presente. Mais ainda, concebiam esse além de maneira teológica, ao mesmo tempo superior aos indivíduos e inscrito dentro de um instante salvador, o da revolução - equivalente leigo da conversão. Elas conferiam uma significação global ao projeto militante de um sacrifício de si em nome de uma causa que, mesmo supostamente material, nem por isso deixava de ser transcendente.
"Apesar do ateísmo de princípio, o marxismo soube articular essa transcendência absoluta do ideal com a intimidade ou a imanência radical da vida cá embaixo. O militante, é verdade, trabalhava para o futuro, para as próximas gerações, para o advento da sociedade perfeita, do paraíso na Terra, mas essas aspiração ao além se encarnava em uma série de práticas concretas que pretendiam dar uma significação aos menores detalhes da vida terrestre. Por reciprocidade, as tarefas cotidianas mais modestas, como a venda de jornais engajados da saída das fábricas ou a organização de uma reunião, se enraizavam no horizonte imaterial de um mundo melhor. Religião, religare, religar, diz-se muitas vezes, segundo uma etimologia que, mesmo contestada, não deixa de ser eloquente: é essa ligação do aqui com o além que também assegurava o laço entre os militantes. A leituras dos jornais era a reza da manhã. Eles podiam, acontecesse o que fosse, nela desvendar aquele famoso 'sentido da história' da qual suas existências pessoais, mesmo que em nível modesto, faziam parte ativa.
"Foi nesse remanejamento secular do religioso que, em grande parte, residiu o extraordinário poder de fascínio que o comunismo exerceu durante um século e meio. Como, de outra forma, compreender que dezenas, ou mesmo centenas de milhões de homens nele se tenham inteiramente lançado? A religião é insubstituível como fornecedora de sentido. E Deus sabia da necessidade de sentido, nos dias seguintes das Guerras Mundiais. A tal ponto que, após a Segunda, o marxismo pareceu afinal como a única doutrina de peso capaz de inscrever a absoluta falta de sentido dentro de uma visão otimista da história e assim enfrentar as duas novas encarnações do Diabo: o nazismo e o imperialismo colonial. Retrospectivamente, de fato, é difícil ver como um intelectual poderia ainda manter alguma confiança nos valores da democracia liberal e da 'civilização' europeia em 1945! E que se pense isso não para legitimar, mas para tentar compreender a dimensão da ilusão... e das desilusões que viriam.
"Foi essa relação com o sentido, tanto da história mundial quanto da vida pessoal, que esvaneceu sem que nada tenha vindo substituí-la nesse terreno. E foi pela laicização do nosso universo que uma doutrina, ainda de certo modo religioso, naufragou no Ocidente, antes até que a Perestroika lhe desse fim, no campo soviético. Por essa razão, o fim do comunismo implicou um vazio maior do que se disse, um vazio que não poderia ser preenchido por qualquer ideologia substituta, a mesma que possuísse as mesmas virtudes teológicas. Mas é este o ponto sensível: os avanços da laicidade, paralelamente aos do individualismo, criaram por todo lado obstáculo ao retorno dos dogmas e dos argumentos de autoridade. Com o naufrágio do marxismo, não foram somente as ideias políticas que animaram a vida de milhões de indivíduos que se viram invalidadas, mas também toda uma visão teológica da política."
(Do livro O homem-deus - ou o sentido da vida, de Luc Ferry.)
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