sábado, 1 de agosto de 2009

TODA CLARIDADE

A viagem atravessou a noite, dentro de um ônibus com cortinas escuras e crianças que brincavam no corredor. Venho de Curitiba, para tirar umas férias fora de tempo. Manhã de outubro. As ruas excessivamente claras em Santa Maria. A Acampamento encontra-se imersa em reflexos que me atingem em cheio. O calçadão é uma réplica da “rua das flores”. Canteiros ao centro, luminárias de acrílico, pessoas bem vestidas. Na Barão do Rio Branco, passando a Matriz, dobro à esquerda. Quadra seguinte. Do lado de uma porta alta, o número que procuro. Edifício antigo. A jovem que vem atender à campainha é de uma beleza incomum. Pergunto-lhe pela Mara. Sorri timidamente e me convida para entrar no pensionato. A mobília da sala é simples: mesa, sofá, televisão. Sozinho, observo. A porta semi-aberta deixa passar um jato oblíquo de sol, eliminando o efeito silhueta no interior. Mara desce a escada, felicíssima ao me ver. Quanto tempo! Quero saber dos nossos. Alguma novidade? Há dez anos conhecemos um ao outro. Amizade pura como as flores do campo. Numa sala contígua, a estudante que me recebeu folheia umas apostilas. Sua atenção volta-se para nós a todo momento. Mara nos apresenta. Este é meu primo. Esta é Cleo. Olhos nos olhos. Ela é encantadora. Toda claridade. As duas leem meus últimos poemas. O relógio dispara. Meio-dia se aproxima. A realidade é algo ruidoso, sempre a interromper a doçura, o sonho. Contra a vontade, despeço-me delas. A imensa porta se fecha outra vez. Mas hei de voltar no final de minhas férias. Por esta luz.
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Dedico esta crônica a Mara Soares, com o carinho de uma amizade que transcende a distância de espaço e tempo.
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A crônica acima, publicada ontem no Expresso Ilustrado, foi inspirada na realidade, um encontro que tive numa manhã não tão distante de 1985 (ou seria no ano seguinte?). Vinha de Curitiba para tirar férias em Santiago. Em Santa Maria, procurei a Mara num pensionato do centro. Desde muito, eu era amigo de seu irmão, Antônio Carlos. A aproximidade com o Tonico me levou a Mara, uma menina admirável.
No livro Cheiro de Goiaba, em que García Márquez conversa com Plinio Apuleyo Mendoza, ficamos sabendo que Cem anos de solidão nasceu da imagem de um velho que leva um menino para conhecer o gelo, exibido como curiosidade de circo. O velho é o próprio avô de Gabi, o Coronel Márquez. Num dia, o avô levou-o para conhecer um dromedário; noutro, para conhecer o gelo numa capanhia bananeira que se fixara em Aracataca, cidadezinha colombiana em que nascera o escritor.
Meus poemas, por exemplo, por mais metafóricos que possam ser, mantém uma relação com a realidade, seja um quadro da natureza, seja uma percepção, uma ideia. O poeta transforma essas imagens e reflexões numa semiose linguística.

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