domingo, 28 de abril de 2019

RETROCESSO NO PENSAMENTO BRASILEIRO


       O presidente da República acha um desperdício bancar os estudos filosóficos, sociológicos e históricos na Universidade Federais. O corte no investimento nas humanas irá beneficiar as áreas científicas e tecnológicas, que, segundo ele, apresentariam “retorno imediato”.
       Seus opositores políticos reagem com a teoria conspiratória de que o governo não quer gente pensante, que desenvolva senso crítico – a ponto de constituir uma ameaça ao establishment. Em épocas pretéritas, essa teoria se sustentava em argumentos que pareciam verdadeiros. Nunca comprovada a posteriori, ela passou ao domínio da esquerda como um de seus preconceitos mais estimados. Márcia Tiburi o expressa agora, numa interpretação arguta do discurso de Jair Bolsonaro.
               A intervenção no ensino superior não se destina a manter nossa juventude alienada, tampouco a alocar recursos para outras áreas, como medicina, veterinária e engenharia. Por trás dessa justificativa, esconde-se a verdade maior, oficializada pela influência de Olavo de Carvalho: pôr fim aos nichos marxistas(-leninistas-trotkistas-stalinistas-gramscistas-castristas-chavistas-lulistas), que resistem dentro das nossas universidades públicas, notadamente nos cursos de Filosofia, Sociologia e História.
                A política educacional a ser colocada em prática pelo governo verificar-se-á um retrocesso no pensamento brasileiro, o ainda incipiente pensamento brasileiro. Por que não mudar e fiscalizar o currículo dos cursos acima?

quinta-feira, 25 de abril de 2019

ANTICRISTO E ECLESIASTES


O professor de Introdução à Filosofia pede-nos uma relação de todos os livros, que julgamos importantes para compor uma biblioteca ideal.
Na hora seguinte, cada um de nós lê o título e autor dos livros escolhidos.
Ao ouvir meus colegas, percebo que (em sua maioria) possuem um universo de leitura bastante reduzido. Alguns livros são citados por simples lembrança de citações já feitas na sala por outros professores. 
Em minha turma, 15 colegas são frades franciscanos, carmelitas ou postulantes conventuais. Alguns deles relacionaram O Anticristo, de Friedrich Nietzsche. A Bíblia não foi lembrada por eles.
O livro de Nietzsche, como é do conhecimento de quem leu Nietzsche, consiste nas mais contundentes marteladas dadas pelo filósofo ao Cristianismo.
Malgrado meu neoateísmo, incluí como leitura importante o Eclesiastes, por ser um libelo contra a vaidade.
O professor não percebeu a contradição, ou a ignorou – como atitude mais sábia.

quarta-feira, 24 de abril de 2019

DE MASI E UMA DIGRESSÃO UTÓPICA


         
          O livro Uma simples revolução, de Domenico De Masi, compõe-se de oitenta e um capítulos curtos, de alguma forma conectados à ideia principal: trabalho, ócio e criatividade.
       Em 2999 (terceiro capítulo), De Masi avança sua análise sociológica em um milênio, para nos apresentar a “civilidade ociosa”. Segundo ele, “a introspecção, a amizade, o amor, a brincadeira, a beleza e a convivência têm, enfim, prevalecido sobre as lutas por poder, dinheiro e posse de bens materiais”.
         Na passagem do terceiro ao quarto milênio, o homem terá a cabeça mais desenvolvida, em razão de teletrabalhar, tele-estudar, teledivertir-se e teleamar – o que o incapacitaria de executar um passo de dança. Por que não teledançar?
         Por trás da ficção científica, assoma-se um gigantesco otimismo – profissão de fé em De Masi. Sua “civilidade” do ócio criativo constitui a primeira utopia pós-industrial. Como seria possível uma era de introspecção, amizade, amor, ludicidade, beleza e convivência depois de um “cataclismo biotecnológico”, que aconteceria no século XXV?
         De Masi se junta a Platão, Al-Farabi, Thomas Morus, Tommaso Capanella, Étienne Cabet, H.G. Wells, Italo Calvino, Gene Roddenberry (criador de Star Trek), entre muitos outros idealistas.
         Antes de superestimar uma era de ociosidade, baseada na ociosidade incipiente do último meio século, o sociólogo interpõe o que seria uma solução de continuidade: o cataclismo biotecnológico (já citado acima). Exceto que esse acontecimento terrível destruiria os bancos de dados da história humana desde o ano 2000 (com o registro eletrônico), nenhuma palavra a mais.
         Não obstante o pessimismo com que antevejo nosso futuro, essa solução de continuidade me parece mais factível e influente. Outra coisa: o homem viveu – e vive – sua parcela de introspecção, amizade, amor, beleza, convivência...

segunda-feira, 22 de abril de 2019

NOTRE DAME: UM SÍMBOLO DA SOLIDEZ


A igreja de Notre Dame foi atingida por um incêndio na semana passada. Suas gárgulas horrendas, com a função de vomitar água, aspiraram fogo, elemento mais violento (mítico e historicamente associado ao castigo, à purgação).
         Antes de acabar o rescaldo, pessoas de diferentes partes do globo passaram a fazer doações milionárias para a recuperação da catedral famosa. O presidente da França falou no local em criar um fundo nacional (e além-fronteiras) com o mesmo objetivo. Dificilmente, ele poderá usar dinheiro público, o que provocaria o recrudescimento dos “coletes amarelos”. Nenhuma palavra da riquíssima Igreja Católica – a propósito.
       A reação de franceses, no entanto, já revela características pós-modernas, como a perda da aura do objeto artístico (segundo Walter Benjamin). O último discurso é de um humanismo radical: gente é mais importante que obras de arquitetura, escultura, pintura ou símbolos religiosos. Os problemas sociais estão a exigir maior atenção que as produções culturais. A parte superior de Notre Dame, diga-se de passagem, serviu de residência para Quasimodo, o corcunda romanceado por Victor Hugo.
         A liberdade, um dos grandes ideais iluministas, assegura aos doadores privados a justificativa de seu mecenato. Mesmo assim, eles não estão livres de crítica, desde que estas não involuam para ameaça ou atentado.

LIBIDO (AQUÉM DO CONCEITO)


A libido é mais que um conceito na teoria dos instintos de Sigmund Freud. Assim como a própria teoria consiste na descrição da coisa instintiva, não a coisa real, a particularidade descrita como “libido” não passa de uma aproximação psicanalítica. A coisa existe, isto é, a energia associada à sexualidade humana. Todo processo de aculturação para redirecionar a libido, ou até mesmo eliminá-la, resulta numa doença mental e psicossomática. A perversão sexual, inclusive praticada por indivíduos celibatários, constitui prova da existência e da força libidinal.

Referências: 

CUNHA. J.A. Dicionário de termos de psicanálise de Freud; tradução e organização de Jurema Alcides Cunha. Porto Alegre: Editora Globo, 1978, pp. 116-118.

VALAS, Patrick. Freud e a perversão; tradução de Dulce Duque Estrada. - Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 1990.




quinta-feira, 18 de abril de 2019

PRESENTE DEPRECIADO


        O queixume de que o mundo atual é o pior dos mundos possíveis ganha uma dimensão epidêmica (que ameaça a saúde integral das pessoas atingidas pelo meme viral). Pari passu com um excesso de sensibilidade, denuncia-se uma debilidade moral, misto de cansaço e medo – por trás da queixa sistemática.
         Depois da vida, cujo valor é incomensurável, a liberdade constitui a prerrogativa fundamental do ser humano. Ela pode servir de referência de como o mundo contemporâneo é imensamente melhor que os mundos passados. Como apoio, eis o que escreve Domenico de Masi:

Se pensarmos bem, o progresso nada mais é que um longo percurso da humanidade rumo à libertação deliberada da fadiga física, em primeiro lugar, e do estresse intelectual, em segundo. Das origens da nossa história até a Idade Média, o homem conseguiu conquistar a libertação da escravidão. Da Idade Média até a primeira metade do século XX, libertou-se da fadiga. Desde a Segunda Guerra Mundial, visa à libertação do trabalho em si.

         O boom tecnológico das últimas décadas, com a máquina a realizar o trabalho de um número cada vez maior de mãos e mentes, tem propiciado um aumento do tempo livre. Novo problema: o que fazer com o tempo livre? Agora o homem não sabe ou não decide como usufruir fora do trabalho. Seu comportamento por omissão permite o preenchimento de uma agenda atribulada, onde toda liberdade é zerada pelas próprias escolhas.
         Nesse mundo em que a liberdade conquistada se perde, em razão do moral baixo, da falta de coragem e discernimento, o discurso recorrente aponta para mundos outros (onde o mito do paraíso perdido ainda faz sentido). O presente sofre uma depreciação injusta, doentia.

MASI, Domenico De. Uma simples revolução; tradução de Yadyr Figueiredo. Rio de Janeiro: Sextante, 2019, p.74.