Quarentina é uma cidade de aproximadamente
100 mil habitantes, localizada na região central do Estado. Ela se destaca por
ilustrar uma tendência nacional em face da crise sanitária provocada pela
COVID-19.
Uma
semana antes de um quarentinense ser infectado pelo Coronavírus, o prefeito decreta
estado de calamidade pública. Sua justificativa é a de que o grande hospital da
cidade dispunha de apenas 10 leitos no CTI, todos ocupados por pacientes com
enfermidades distintas. O decreto permite ao governo municipal de Quarentina
descumprir até o dia 31 de dezembro do ano corrente a meta fiscal (já
deficitária).
Quando
o vírus chega finalmente, trazido da capital por um homem sem nome, a imprensa
noticia exaustivamente a importância desse fato. As redes sociais se ocupam em
potencializar a ignorância e o medo. O prefeito, vestido impecavelmente num
terno azul, ajeita-se frente aos holofotes para ler um novo documento que
decreta a obrigatoriedade do isolamento.
No dia seguinte, uma viatura
oficial passa a rodar pelas ruas de Quarentina, a repetir a frase imperativa:
“Fiquem em casa!”. As crianças, a potiori
mais rebeldes, não causam problema, felizes por não irem à escola. Os idosos,
em contrapartida, sentem-se ameaçados na sua liberdade de ir e vir, mais
relutantes em obedecer à recomendação. De dentro das casas, as pessoas os julgam
uns teimosos. Uma segunda viatura percorre a cidade com uma mensagem
“terrivelmente evangélica”, a enfatizar a ira do Senhor.
Outra medida tomada é a colocar barreira de
fiscalização nas entradas da cidade, a medir a febre de quem vem de fora, a
perguntar-lhe nome, endereço, telefone e outros dados, que são anotados numa
prancheta. A partir das 18 horas, não há mais fiscalização, o que infere a
possibilidade de o Coronavírus ser um viajante diurno.
Os apelos do pessoal da
saúde para a necessidade da quarentena são confrontados pelo presidente da
República, que discursa contrariamente pela volta à normalidade. Enquanto isso,
na terceira ou quarta semana, o grande grupo de isolados em suas casas começa a
se dividir: uma parte continua a sustentar o isolamento social, e a outra, a
justificar a volta ao normal. Funcionários públicos versus trabalhadores do setor privado.
Antes que a situação
provoque uma guerra, o prefeito reúne a imprensa para fazer a leitura do
terceiro decreto. Desta vez, para permitir que determinadas lojas reabram suas
portas. O nome pomposo para essa nova política é flexibilização com segurança. Outro item decretado versa sobre a
obrigatoriedade do uso de “protetor facial” (ou máscara). Dois eventos pontuais
forçam a saída de casa: a vacinação para a gripe H1N1 e o pagamento do
benefício de 600 reais. As filas na Caixa Econômica dobram a esquina, a
facilitar o ataque em série do famigerado “inimigo invisível”.
A imprensa continua a
prestar muita desinformação, na esteira da Rede Planeta, tendenciosa em separar
o joio do trigo para publicar o joio. Os repórteres não se afastam da porta do
hospital, ansiosos para dar o furo da primeira morte por COVID em Quarentina. Toda
novidade, entretanto, cabe ao prefeito fazer a comunicação oficial.
A história do pico da doença
não pode ficar de fora deste registro em vista de seu teor cômico. Desde o
princípio, o pico foi divulgado como uma forma de convencer as pessoas a se
conformarem com a quarentena. As opiniões com estatuto de ciência preveem o
pico para a primeira semana de abril. Passa a primeira semana, e uma nova
previsão é feita para o fim de abril. O fim de abril chega, e outra vez o pico
é procrastinado para maio.
Antes do ponto final, um
esclarecimento se faz necessário (para proteger este autor das críticas
virulentas): Quarentina é uma cidade distópica, qualquer semelhança com a
realidade constitui mera coincidência.
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