segunda-feira, 4 de maio de 2020

QUARENTINA


         Quarentina é uma cidade de aproximadamente 100 mil habitantes, localizada na região central do Estado. Ela se destaca por ilustrar uma tendência nacional em face da crise sanitária provocada pela COVID-19.
         Uma semana antes de um quarentinense ser infectado pelo Coronavírus, o prefeito decreta estado de calamidade pública. Sua justificativa é a de que o grande hospital da cidade dispunha de apenas 10 leitos no CTI, todos ocupados por pacientes com enfermidades distintas. O decreto permite ao governo municipal de Quarentina descumprir até o dia 31 de dezembro do ano corrente a meta fiscal (já deficitária).
         Quando o vírus chega finalmente, trazido da capital por um homem sem nome, a imprensa noticia exaustivamente a importância desse fato. As redes sociais se ocupam em potencializar a ignorância e o medo. O prefeito, vestido impecavelmente num terno azul, ajeita-se frente aos holofotes para ler um novo documento que decreta a obrigatoriedade do isolamento.
No dia seguinte, uma viatura oficial passa a rodar pelas ruas de Quarentina, a repetir a frase imperativa: “Fiquem em casa!”. As crianças, a potiori mais rebeldes, não causam problema, felizes por não irem à escola. Os idosos, em contrapartida, sentem-se ameaçados na sua liberdade de ir e vir, mais relutantes em obedecer à recomendação. De dentro das casas, as pessoas os julgam uns teimosos. Uma segunda viatura percorre a cidade com uma mensagem “terrivelmente evangélica”, a enfatizar a ira do Senhor.
 Outra medida tomada é a colocar barreira de fiscalização nas entradas da cidade, a medir a febre de quem vem de fora, a perguntar-lhe nome, endereço, telefone e outros dados, que são anotados numa prancheta. A partir das 18 horas, não há mais fiscalização, o que infere a possibilidade de o Coronavírus ser um viajante diurno.
Os apelos do pessoal da saúde para a necessidade da quarentena são confrontados pelo presidente da República, que discursa contrariamente pela volta à normalidade. Enquanto isso, na terceira ou quarta semana, o grande grupo de isolados em suas casas começa a se dividir: uma parte continua a sustentar o isolamento social, e a outra, a justificar a volta ao normal. Funcionários públicos versus trabalhadores do setor privado.
Antes que a situação provoque uma guerra, o prefeito reúne a imprensa para fazer a leitura do terceiro decreto. Desta vez, para permitir que determinadas lojas reabram suas portas. O nome pomposo para essa nova política é flexibilização com segurança. Outro item decretado versa sobre a obrigatoriedade do uso de “protetor facial” (ou máscara). Dois eventos pontuais forçam a saída de casa: a vacinação para a gripe H1N1 e o pagamento do benefício de 600 reais. As filas na Caixa Econômica dobram a esquina, a facilitar o ataque em série do famigerado “inimigo invisível”.
A imprensa continua a prestar muita desinformação, na esteira da Rede Planeta, tendenciosa em separar o joio do trigo para publicar o joio. Os repórteres não se afastam da porta do hospital, ansiosos para dar o furo da primeira morte por COVID em Quarentina. Toda novidade, entretanto, cabe ao prefeito fazer a comunicação oficial.
A história do pico da doença não pode ficar de fora deste registro em vista de seu teor cômico. Desde o princípio, o pico foi divulgado como uma forma de convencer as pessoas a se conformarem com a quarentena. As opiniões com estatuto de ciência preveem o pico para a primeira semana de abril. Passa a primeira semana, e uma nova previsão é feita para o fim de abril. O fim de abril chega, e outra vez o pico é procrastinado para maio.
Antes do ponto final, um esclarecimento se faz necessário (para proteger este autor das críticas virulentas): Quarentina é uma cidade distópica, qualquer semelhança com a realidade constitui mera coincidência.

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