quarta-feira, 15 de outubro de 2014

PORTA BRANCA

A porta entre a sala e a cozinha encontra-se fechada, uma porta branca. Muito estranho, uma vez que ela nunca fora fechada. Ato contínuo, chamo pela mulher que dorme no quarto, para indagar-lhe se fechou a porta à noite.
Sua resposta não diminuiria o mistério: a porta branca.
A impressão é de que meu chamado não sai da boca, por mais que faça um grande esforço.
Neste instante de aflição, desperto do sono (e do sonho).
Antes de dormir, começara a leitura de O espírito do ateísmo, de André Comte-Sponville. Ancorado nesse filósofo, ocorre-me o seguinte insight: o paraíso, se existisse, não poderia permitir à pessoa recém-chegada a mínima lembrança desta vida, a mínima consciência de sua individualidade, sob pena de transformar esse lugar numa prisão (com portas brancas), ao contrário de uma libertação.
Na hipótese de não haver essa lembrança, com a perda da individualidade, qual a relação que existiria entre a vida terrena e a vida eterna?
Num sentido inverso, a vida terrena não propicia a mínima lembrança de uma vida anterior, denegando a crença do espiritismo.
Os sonhadores, que creem em vidas aquém e além, sustentam que a vida real não passa de um sonho. O sonho, para eles, constitui a realidade. Nossos sentidos seriam “demônios” que nos enganam o tempo todo. Herança maldita de Platão.
Em coma, provavelmente não teria acordado de madrugada, e a porta branca do meu sonho ganharia em realidade.

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