sábado, 6 de outubro de 2007

PÍRAMO E TISBE

Uma das histórias de amor mais extraordinárias da mitologia, e que, provavelmente, tenha inspirado William Shakespeare a escrever Romeu e Julieta, é a de Píramo e Tisbe. Transcrevo-a do livro A mitologia, de Edith Hamilton.
Há muito, muito tempo, as bagas profundamente vermelhas da amoreira eram brancas como a neve. A mudança de cor que se operou foi provocada por algo de bastante estranho e triste - a morte de dois jovens apaixonados.
Píramo e Tisbe, ele, o mais belo rapaz, e ela, a mais encantadora donzela de todo o Oriente, viviam em Babilônia, a cidade da rainha Semíramis, em casas tão juntas que uma das paredes era comum a ambas. Cresceram, assim, lado a lado, e aprenderam a amar-se mutuamente. Queriam casar, mas os pais não o permitiam. O amor, porém, não pode ser proibido. Quanto mais coberta é a chama mais o fogo atiça. Além disso, o amor é capaz de arranjar sempre uma solução para obter o que pretende. Era impossível continuar a manter separados aqueles dois seres, cujos corações transbordavam de amor.
Na tal parede que ambas as casas partilhavam havia uma pequena fenda de que nunca ninguém se apercebera. Mas não há nada que um apaixonado não descubra, quando procura um meio de estar mais próximo do ser amado... Os dois jovens descobriram-na e, através dela, sussurravam doces palavras de amor. Tisbe de um lado, Píramo do outro. [...] Quando a noite caía e era preciso separarem-se, ambos imprimiam beijos na parede, já que não podiam tocar os lábios que se encontravam do outro lado.
Todas as manhãs, à hora em que o alvorecer apagava o brilho das estrelas e os raios do Sol já tinham absorvido a geada dos campos, dirigiam-se a passo furtivos; umas vezes, trocando palavras de amor ardente, outras, lamentando a sua triste sorte. Chegou o dia, contudo, em que já não podiam resistir por mais tempo. Resolveram, pois, tentar esquivar-se nessa mesma noite e atravessar a cidade às escondidas até ao campo, onde, finalmente, poderiam estar os dois juntos sem qualquer embargo. Combinaram encontrar-se num local muito conhecido - o Túmulo de Nini - junto de uma enorme amoreira carregadinha de bagas brancas como a neve e perto da qual gorgolejava uma fonte. O plano agradou-lhes em absoluto, mas o dia parecia nunca mais ter fim...
O Sol mergulhou no Oceano e as trevas envolveram a Terra, enfim. Na escuridão, Tisbe escapuliu-se de casa e, no maior silêncio, dirigiu-se para o local aprazado. Píramo ainda não tinha chegado; não obstante, Tisbe ficou à espera dele, pois o amor tornava-a audaciosa. De repente, porém, distinguiu, coado à luz do luar, o vulto de uma leoa. O animal tinha morto alguém - trazia as patas ensanguentadas... via saciar a sede na fonte. A jovem conseguiu pôr-se a salvo porque a fera se encontrava ainda a uma distância considerável; mas, ao fugir, apanhada tão de surpresa, deixou cair a capa. Quando a leoa regressava ao covil, abocou-a e fê-la em pedaços, antes de desaparecer no interior do bosque. Eis a cena que se deparou a Píramo, quando este chegou, alguns minutos depois - diante dele, na obscuridade, os farrapos ensanguentados da capa e as pegadas nítidas da leoa. Era inevitável a conclusão - Tisbe tinha sido morta. E ele deixara o seu amor, aquela terna criatura, vir sozinha para um lugar como aquele tão cheio de perigos?! "Fui eu que te matei!..." - exclamou. Levantou do pó espezinhado o que restava da capa e, beijando-a mais uma vez, levou-a para junto da amoreira. "Agora - disse - vais beber também o meu sangue." Arrancou a espada e enterrou-a no coração. O sangue em borbotões esparrinhou as bagas, que se tingiram de vermelho-escuro.
Entretanto, Tisbe, ainda que aterrorizada pela leoa, receava, antes de tudo mais, não conseguir encontrar-se com o amado. Resolveu, pois, aventurar-se a regressar para junto da árvore, o local para onde fora marcado o encontro, a amoreira de frutos brancos. Não a encontrou, porém. Viu uma árvore, realmente, mas nem sequer uma centelha de brilho branco se divisava nos ramos. Enquanto, perplexa, fitava a planta, notou estarrecida que alguma coisa se mexia no chão. Começou a recuar horrorizada. Mas, de repente, espreitando por entre as sombras, teve a certeza de que havia ali qualquer coisa. Era Píramo, banhado em sangue, prestes a expirar. Voou, então, para ele e enlaçou-o. Beijou-lhe os lábios frios, implorando-lhe que a olhasse, que lhe falasse. "Sou eu, a tua Tisbe, a tua amada!" - exclamou a chorar. Ao ouvir pronunciar o nome dela, Píramo entreabriu os olhos para a contemplar pela vez derradeira. Depois a morte fechou-lhos para sempre.
Tisbe viu a espada que caíra da mão dele e, ao lado, a sua capa toda manchada e esfarrapada. Foi, então, que compreendeu tudo. "A tua mão te matou - disse - e o teu amor por mim. Eu também sei ter coragem. Também eu sei amar. Só a morte seria capaz de nos separar; e, contudo, agora, deixará de ter esse poder!" Mergulhou no coração a espada ainda húmida do sangue da sua vida.
Os deuses, por fim, apiedaram-se dos dois, tal como os pais de ambos. O fruto vermelho-escuro da amoreira é o único testemunho perpétuo desses verdadeiros apaixonados, cujas cinzas se encontram reunidas numa única urna, pois nem a morte conseguiu separá-los.

Nenhum comentário: