O caderno Cultura, do Zero Hora de ontem, é inteiramente dedicado a José Saramago. Capa e contra-capa em preto, a cor (ou ausência de cor) do luto na cultura de influência cristã. Não bastasse a leitura visual, a manchete de capa é por demais explícita: A língua portuguesa de luto. Na contra-capa, a transcrição de um poema de Saramago, do livro Os poemas possíveis (editado em 1966).
Saramago é daqueles autores que, a despeito da grandeza de sua obra, despertam a atenção por aquilo que dizem, por aquilo que são. Sobre o grande Guimarães Rosa, por exemplo, poucos sabem sobre a vida particular, o que fez além de escrever. O escritor português me despertou com o romance O Evangelho segundo Jesus Cristo. Seu último livro, Caim, não consegui soltá-lo antes de concluída a leitura. O que eu mais gostava em Saramago depois de sua literatura era seu ateísmo confesso, sem medo, livre de qualquer culpa. O mesmo caráter em relação ao marxismo que professava.
Quanto ao estilo, Saramago foi barroco. Suas frases eram muito bem escritas, apesar de longas. Um preciosista da sintaxe, como o foi Machado de Assis. Outro aspecto que aproxima Saramago de Machado é o humor, como no excerto que transcrevo de seu Ensaio sobre a cegueira (pp. 56 e 57):
"Por fim, a fila lá ficou ordenada, atrás da mulher do médico ia a rapariga dos óculos escuros com o rapazinho estrábico pela mão, depois o ladrão, de cuecas e camisola interior, a seguir o médico, e no fim, a salvo de agressões por agora, o primeiro cego. Avançavam muito devagar, como se não se fiassem de quem os guiava, com a mão livre iam tenteando o ar, procurando à passagem o apoio de algo sólido, uma parece, a ombreira duma porta. Colocado atrás da rapariga dos óculos escuros, o ladrão, estimulado pelo perfume que se desprendia dela e pela lembrança da erecção recente, decidiu usar as mãos com maior proveito, uma acariciando-lhe a nuca por baixo dos cabelos, a outra, directa e sem cerimónia, apalpando-lhe o seio. Ela sacudiu-se para escapar ao desaforo, mas ele tinha-a bem agarrada. Então a rapariga jogou com força uma perna para trás, num movimento de coice. O salto do sapato, fino como um estilete, foi espetar-se no grosso da coxa numa do ladrão, que deu um berro de surpresa e de dor. Que se passa, perguntou a mulher do médico olhando para trás, Fui eu que tropecei, respondei a rapariga dos óculos escuros, parece que magoei quem vinha depois de mim. O sangue aparecia já entre os dedos do ladrão que, gemendo e praguejando, tentava apurar os efeitos da agressão, Estou ferido, esta gaja não vê onde põe os pés, E você não vê onde põe as mãos, respondeu secamente a rapariga".
Como se interpreta do excerto acima, Saramago não dá nome aos personagens de Ensaio sobre a cegueira, tratando-os apenas por uma característica qualquer. Em certos momentos desse romance, Saramago me faz lembrar de Kafka. Não deve ser lido ao pé da letra, mas como uma alegoria. Uma alegoria al revés do Mito da Caverna de Platão.
No caderno Cultura, há uma entrevista com o autor português, cuja frase destacada é "Não sou otimista, mas quero sê-lo". Em seguida, uma crônica de Moacyr Scliar. Nas páginas seguintes, Carlos André Moreira e Itamar Melo escrevem sobre Saramago.
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