INTERTEXTUALIDADE NOS
CANTARES ARES
DE ORACY DORNELLES
À medida que todo texto remete, direta ou indiretamente, a
outros textos disponíveis, segundo o conceito de intertextualidade de Kristeva
(1972), sua leitura exige o conhecimento prévio daqueles a que ele se relaciona
polissemicamente. Sem essa condição, não há leitura e, por extensão, não há
textualidade. Os grandes poetas inovam a expressão de uma realidade qualquer,
dentro da ressignificação que transforma o receptor num segundo autor.
Para
a leitura de Cantares ares, de Oracy Dornelles, exige-se conhecimento de
outros textos, que abarquem as diversas mitologias (egípcia, judaica, grega e
moderna), a historiografia, a filosofia, a arte (pintura, música e literatura),
a metalinguística etc. O leitor é instigado continuamente a recriar sobre os
signos verbais partidos em unidades menores. Inclusive o espaço em branco, nos
poemas oracyanos, adquire significação especial, que se pode denominar
semântica do silêncio (visto que, foneticamente, o recurso gráfico já possui
uma função rítmica fundamental).
O
primeiro verso monossilábico de Os cantos, com que o poeta inicia
seus cantares, remete ao deus solar Rá, supremo criador dos outros deuses, pai
de todos os grandes faraós egípcios. No final do poema, após uma onomatopeia
extraordinária, a partição Ez-ra,
metralhadora rara da poética contemporânea já aludida no título (Os cantos). O tempo que decorre com o virar da página, o
leitor se pergunta sobre o criador do imagismo, Ezra Pound, que defendia ser o
poeta a “antena sensível da raça humana”.
Do
outro lado da folha, o fonético O IX
tematiza o Santo Graal, que pertence à mitologia cristã. A própria Igreja
Católica não dá ao cálice mais que um valor simbólico e acredita que o Graal
não passa de literatura medieval. Em Ave, o intertexto se apresenta na
forma de paródia: ave narina/ cheia de
vento…/ ave narina/ cheia de de/ roubai por mim. A rica variedade léxica do
poema exige do leitor o suporte de outras tantas leituras correspondentes: pingala, iogue, ramacharaca, prana, chacra etc.
Na
sequência, poemas de dois a quatro versos fazem alusão a diversos nomes
míticos, históricos e artísticos: drácula,
Mary Shelley, Frankenstein, Tutancâmon, Alice, Maguila, salamanca, Cristóvão,
Fallópio, Eustáquio, medusa, Calígula, Cleópatra, Pilatos, Homero, Picasso, Van
Gogh, Rubens, Alexandria, Diógenes, Camões etc. Em Parnasiana, Oracy graceja
com o dilema de Emílio de Menezes: Pobre
do Emílio de Menezes/ levava trinta dias procurando/ uma rima para
“conspícua”./ Inventasse uma ridícua! Em Grega, o leitor precisa
saber previamente o que é ou quem é Xenofonte: aonde te abeberaste/ ó estudante sábio/ de tanta erudição/ em que xenofonte?
Depois de Platão. Xenofonte foi o principal testemunho e apologista de
Sócrates.
A
metapoética, a análise da própria arte, também constitui uma recorrência à
intertextualidade. Já caracterizada no poema acima citado, evidencia-se em Antigo:
ah, tempo dos álbuns e dos acrósticos!/ cada
crucifixo de soneto!/ a rima de cima em forma de canga/ e em decúbito dorsal/ o
nome da camanga. Em Legítimo hai cai, as exatas 17 sílabas sequenciais do gênero poético. Em Explícito:
Poema nu:/ um epicédio entre dois
hemistíquios/ sem métrica/ duro. Ludismo semiológico em O
piolho: o piolho/ as piolhas/ co/
pulando/ o cio das piolhas! (Com o acréscimo de três pontinhos na vertical
ao ponto de exclamação.) Em Onde, igualmente: onde está a foice?/ entre o taco de
beisebol!/ e o gorro^.
Na
segunda parte do livro, ares, Oracy Dornelles revela toda
sua capacidade criativa, explorando a forma clássica de composição poética – o
soneto. Esse gênero constitui o apoio intertextual para seus sonemínimos, cujos
títulos fazem alusão ao próprio Oracy, à sua especialização grafológica, à sua
arte de escrever e de micropintar, ao seu hobby
de campeador de estrelas, de brincar com os números, de ouvir Beethoven, de
domesticar pulgas (criador da Olimpúlgada).
São
idiossincrásicos os títulos: Sonemínimo
perfeito parnasianíssimo de 24 letras; Estranhíssimo, único e falso soneto
intergaláctico, contendo um inacreditável terceto gravitacional, suspenso na
órbita do último terceto do sonemínimo, agindo como um satélite; Estranho e
falso soneto, contendo 7 letras e uma equação numérica – Inicia com um quarteto
invisível, ou prosódico, e também com uma chave de ouro também invisível ou
prosódica, tornando-se o único sonemínimo sem fim do cosmos; Falso e patético
soneto equacional… o menor sonemínimo do Universo em expansão (bacilo de
soneto), estando o restante dos dois quartetos e dos dois tercetos
completamente invisíveis num colapso prosódico; Poemínimo final com cacófato
diacrítico e rima invisível.
Cantares
ares se antecipa ao espírito pós-moderno de síntese e
globalização do conhecimento, com o diferencial da intermediação estética. A
clivagem, o léxico, o ritmo, o humor e, sobretudo, a intertextualidade fazem
dos microtextos oracyanos também a contrapartida do eminentemente moderno (que
viceja numa diversidade de gêneros textuais).
Froilam de Oliveira
(Publicado no livro O que
importa em Oracy, com Fátima Friedriczewski e Júlio Prates, 2003)
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