sábado, 11 de julho de 2015

CANTARES ARES



INTERTEXTUALIDADE NOS CANTARES ARES
DE ORACY DORNELLES

         À medida que todo texto remete, direta ou indiretamente, a outros textos disponíveis, segundo o conceito de intertextualidade de Kristeva (1972), sua leitura exige o conhecimento prévio daqueles a que ele se relaciona polissemicamente. Sem essa condição, não há leitura e, por extensão, não há textualidade. Os grandes poetas inovam a expressão de uma realidade qualquer, dentro da ressignificação que transforma o receptor num segundo autor.
Para a leitura de Cantares ares, de Oracy Dornelles, exige-se conhecimento de outros textos, que abarquem as diversas mitologias (egípcia, judaica, grega e moderna), a historiografia, a filosofia, a arte (pintura, música e literatura), a metalinguística etc. O leitor é instigado continuamente a recriar sobre os signos verbais partidos em unidades menores. Inclusive o espaço em branco, nos poemas oracyanos, adquire significação especial, que se pode denominar semântica do silêncio (visto que, foneticamente, o recurso gráfico já possui uma função rítmica fundamental).
O primeiro verso monossilábico de Os cantos, com que o poeta inicia seus cantares, remete ao deus solar Rá, supremo criador dos outros deuses, pai de todos os grandes faraós egípcios. No final do poema, após uma onomatopeia extraordinária, a partição Ez-ra, metralhadora rara da poética contemporânea já aludida no título (Os cantos).  O tempo que decorre com o virar da página, o leitor se pergunta sobre o criador do imagismo, Ezra Pound, que defendia ser o poeta a “antena sensível da raça humana”.
Do outro lado da folha, o fonético O IX tematiza o Santo Graal, que pertence à mitologia cristã. A própria Igreja Católica não dá ao cálice mais que um valor simbólico e acredita que o Graal não passa de literatura medieval. Em Ave, o intertexto se apresenta na forma de paródia: ave narina/ cheia de vento…/ ave narina/ cheia de de/ roubai por mim. A rica variedade léxica do poema exige do leitor o suporte de outras tantas leituras correspondentes: pingala, iogue, ramacharaca, prana, chacra etc.
Na sequência, poemas de dois a quatro versos fazem alusão a diversos nomes míticos, históricos e artísticos: drácula, Mary Shelley, Frankenstein, Tutancâmon, Alice, Maguila, salamanca, Cristóvão, Fallópio, Eustáquio, medusa, Calígula, Cleópatra, Pilatos, Homero, Picasso, Van Gogh, Rubens, Alexandria, Diógenes, Camões etc. Em Parnasiana, Oracy graceja com o dilema de Emílio de Menezes: Pobre do Emílio de Menezes/ levava trinta dias procurando/ uma rima para “conspícua”./ Inventasse uma ridícua! Em Grega, o leitor precisa saber previamente o que é ou quem é Xenofonte: aonde te abeberaste/ ó estudante sábio/ de tanta erudição/ em que xenofonte? Depois de Platão. Xenofonte foi o principal testemunho e apologista de Sócrates.
A metapoética, a análise da própria arte, também constitui uma recorrência à intertextualidade. Já caracterizada no poema acima citado, evidencia-se em Antigo: ah, tempo dos álbuns e dos acrósticos!/ cada crucifixo de soneto!/ a rima de cima em forma de canga/ e em decúbito dorsal/ o nome da camanga. Em Legítimo hai cai, as exatas 17 sílabas sequenciais do gênero poético. Em Explícito: Poema nu:/ um epicédio entre dois hemistíquios/ sem métrica/ duro. Ludismo semiológico em O piolho: o piolho/ as piolhas/ co/ pulando/ o cio das piolhas! (Com o acréscimo de três pontinhos na vertical ao ponto de exclamação.) Em Onde, igualmente: onde está a foice?/ entre o taco de beisebol!/ e o gorro^.
Na segunda parte do livro, ares, Oracy Dornelles revela toda sua capacidade criativa, explorando a forma clássica de composição poética – o soneto. Esse gênero constitui o apoio intertextual para seus sonemínimos, cujos títulos fazem alusão ao próprio Oracy, à sua especialização grafológica, à sua arte de escrever e de micropintar, ao seu hobby de campeador de estrelas, de brincar com os números, de ouvir Beethoven, de domesticar pulgas (criador da Olimpúlgada).
São idiossincrásicos os títulos: Sonemínimo perfeito parnasianíssimo de 24 letras; Estranhíssimo, único e falso soneto intergaláctico, contendo um inacreditável terceto gravitacional, suspenso na órbita do último terceto do sonemínimo, agindo como um satélite; Estranho e falso soneto, contendo 7 letras e uma equação numérica – Inicia com um quarteto invisível, ou prosódico, e também com uma chave de ouro também invisível ou prosódica, tornando-se o único sonemínimo sem fim do cosmos; Falso e patético soneto equacional… o menor sonemínimo do Universo em expansão (bacilo de soneto), estando o restante dos dois quartetos e dos dois tercetos completamente invisíveis num colapso prosódico; Poemínimo final com cacófato diacrítico e rima invisível.
Cantares ares se antecipa ao espírito pós-moderno de síntese e globalização do conhecimento, com o diferencial da intermediação estética. A clivagem, o léxico, o ritmo, o humor e, sobretudo, a intertextualidade fazem dos microtextos oracyanos também a contrapartida do eminentemente moderno (que viceja numa diversidade de gêneros textuais).

Froilam de Oliveira
(Publicado no livro O que importa em Oracy, com Fátima Friedriczewski e Júlio Prates, 2003)

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