sábado, 2 de janeiro de 2016

O LIVRO E OS LIVROS

I

Uma criança santiaguense, antes mesmo de ser alfabetizada pelos pais ou pela escola, é apresentada à Bíblia – o livro ditado por Deus. Dessa forma, ela passa a ter uma iniciação, um condicionamento na religião em que fora batizada nos primeiros anos de vida. Mais tarde, ela é inserida noutro processo, o de laicização, por intermédio das letras e dos números. Concomitantemente, aproveitando-se da personalidade ainda maleável do indivíduo, a Igreja Católica o submete ao segundo e decisivo ritual: a eucaristia (ou primeira comunhão).
Outra criança, nascida em Gardez (Afeganistão), antes mesmo de ser alfabetizada pelos pais ou pela escola, conhece o Corão – o livro ditado por Deus. Lá o primeiro rito é o azan, em que o pai recita os fundamentos do islã no ouvido do bebê. Obviamente, a iniciação religiosa em Gardez é muito mais disciplina, mais rígida que a realizada em Santiago (Brasil).
O resultado é bastante diferente: um novo cristão aqui e um novo islâmico lá. Sobre esse condicionamento, Richard Dawkins afirma que “não existe criança muçulmana, não existe criança cristã”. Por influência dos pais e da cultura dominante, ela será, inexoravelmente, muçulmana em Gardez e cristã em Santiago. A recíproca não é verdadeira.
A diferença não acaba entre cristãos e muçulmanos. Basta acrescentar uma terceira criança, que tenha nascido em Bersebá, ou Be’er Sheva, em Israel. Ela seria condicionada à Torá (a Bíblia de Gênesis a Deuteronômio). Ao longo da Idade Média, viveria a diáspora, longe de Israel por motivos políticos e religiosos. Na Europa medieval, dominada pelos cristãos, usaria o símbolo da estrela de Davi, para identificar sua condição de pária social. Caso nascesse nestes dias, não mais usaria o símbolo discriminatório, mas estaria no seio de uma guerra fratricida com os palestinos.
Qualquer uma dessas crianças é condicionada a pertencer à mesma religião de seus pais, não se tornando uma pessoa secular – por intermédio da leitura de outros livros, do conhecimento e da lógica. 


II

Os outros livros formam uma relação extensa, iniciada com Da revolução de esferas celestes, de Nicolau Copérnico, ao Tratado de ateologia, de Michel Onfray. Entre eles, alguns são fundamentais para uma mudança de paradigma, como A origem das espécies e A descendência do homem, de Charles Darwin. O primeiro demonstra que “as espécies não foram criadas independentemente, mas que descendem de outras espécies”. O segundo prova que “o homem descende de formas inferiores”. Pelo fato do autor viver em plena Era Vitoriana, caracterizada pelo moralismo preconceituoso, admite-se o reducionismo “formas inferiores” (algo especista). Seus seguidores, chamados de darwinistas, substituíram a expressão entre aspas por “ancestrais”.


III

Os quatro livros que escolhi para uma pequena análise (a partir de suas ideias principais) são os seguintes: A morte da fé, de Sam Harris; Deus, um delírio, de Richard Dawkins; Quebrando o encanto, de Daniel Dennett; e Deus não é grande, de Christopher Hetchens.
Por que esses quatro?
A primeira resposta é que foram produzidos entre 2004 e 2007, o que lhes dá uma visão mais ampla da modernidade. Todos se alinham ao neoateísmo, uma evolução memética do ateísmo que caracterizava o século XX. Os neoateus são corajosos, como Harris, que acusa o islamismo de ser uma crença radical e belicosa. São cientificistas, como Dawkins, que elucida o Darwinismo e o contrapõe ao teísmo baseado no design inteligente. Propositivos, como Dennett, que defende o estudo da religião como fenômeno natural. Inflamados e persuasivos, como Hitchens, que desconstrói mitos modernos e conclama a um novo iluminismo.
Os “quatro cavaleiros do Apocalipse” são engajados em transformar a realidade, eliminando-se toda e qualquer influência da religião tradicional.

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