A Campanha da Fraternidade deste ano tem
o tema “Casa comum, nossa responsabilidade”, fundamentado no subtítulo da
encíclica Laudato Si’, do papa
Francisco, e o lema “Quero ver o direito brotar como fonte e correr a justiça
qual riacho que não seca”, uma perífrase ideológica de Amós 5. 24. A campanha é
organizada pelo Conselho Nacional de Igrejas Cristãs (CONIC), uma pretensão de
ecumenismo que encobre a atuação política da Confederação Nacional dos Bispos
do Brasil (CNBB).
Minha primeira consideração diz respeito
à inversão de valores diligenciada pela Igreja Católica (ou sob sua liderança).
Desde Roma, ela passou, de uma forma crescente ao longo dos séculos, a se
importar mais com o terreno, material, e menos com a (sobre)natureza
espiritual, a essência cristã. Em passagens diversas dos evangelhos, Jesus
distinguiu dois modus vivendi – entre
esta vida e a vida-além, entre o que é de César e o que é de Deus. Paulo de
Tarso, o grande pregador, aprofundou ainda mais a diferença entre os dois
mundos. As maiores intervenções da Santa Sé contribuíram significativamente
para fazer da Terra um “lacrimarum valle” (conforme a oração da Salve Rainha). Não bastassem os
processos inquisitoriais, com perseguição, prisão, tortura e morte de centenas
de milhares de homens e mulheres, o poder de sotaina apoiou as piores guerras
religiosas da história. Mas não há mal que sempre dure: graças à secularização,
o Catolicismo entrou em decadência, afundando-se nas próprias contradições.
João Paulo II foi o primeiro líder
católico a perceber o abismo em que se metera a igreja. No começo de seu
pontificado, declarou bombasticamente que “Sobre toda propriedade privada, pesa
sempre uma hipoteca social”. Um grito em favor dos pobres, que rompia com o
liberalismo capitalista e dava argumentos à teoria
da libertação, francamente marxista. A reação conservadora não demorou a
retomar o controle doutrinário. Sua figura mais proeminente era Joseph
Ratzinger, que acabou usando o Anel do Pescador109.
Atualmente, o papa Francisco vem
surpreendendo o mundo com um discurso antidogmático, socializante e
pró-científico. Por muito menos, homens e mulheres seriam levados à fogueira
pelos tribunais da Inquisição. Depois de um longo silêncio da Igreja acerca das
maiores descobertas da ciência (uma autopenitência pelo processo contra
Galileu), o Papa afirma que o big bang
e o darwinismo são perfeitamente compatíveis com a ideia de um deus criador.
Essa tergiversação do tema foi
necessária para submetê-lo agora a uma análise mais séria. Os parágrafos acima
insistem na tese de que a Igreja Católica abandona os dogmas metafísicos, para,
cada vez mais, ocupar-se com as ordens imaginadas pela laicização. A encíclica Laudato Si’, assinada pelo pontífice,
mais parece uma agenda ecológica, que os países não conseguem formular (não
obstante os esforços nesse sentido). Ainda que a preocupação com o ambiente
deste “Vale de Lágrimas” tenha pautado documentos de papas anteriores, é com
Francisco que ela se efetiva discursivamente. Sua concepção de uma “ecologia
integral” é “inspirada” no modelo do santo xará, Franscisco de Assis110.
“Irmã” ou “mãe”, o planeta ganha uma outra metáfora: casa comum. (No tópico 38,
o autor incorre no equívoco que compara as regiões de floresta – Amazônia e
Bacia do Congo – com um pulmão. Floresta e pulmão são antípodas,
respectivamente, na produção e no consumo de oxigênio, ou no consumo e produção
de dióxido de carbono.)
A nossa “casa comum”, sempre exposta às
catástrofes naturais de pequenas ou grandes montas, vê-se ameaçada pelas
mudanças climáticas atuais. Toda tecnologia e todo desenvolvimento não foram
suficientes para distribuir os bens produzidos de uma forma igualitária. As
diferenças entre ricos e pobres são geradoras de injustiça – segundo a
interpretação idealista cristã, em franca contradição com a ideologia do Sermão
da Montanha. Perante o atual estágio de degradação generalizada, esfuma-se a
perspectiva de os pobres se tornarem ricos. Para que tal ocorresse, necessitaríamos
mais três planetas (em iguais condições de temperatura e pressão). Parte do
estrago ambiental é atribuída à sanha de progresso, que caracteriza o homo sapiens desde o princípio do
Neolítico.
A casa encontra-se dividida. O papa quer
pôr ordem nela, como se isso fosse possível pela equalização dos direitos de
seus ocupantes. Mais que as políticas, as religiões impossibilitam uma casa
comum. O próprio cristianismo dividiu-se com guerras fratricidas. Francisco
representa apenas o segmento católico. De sua zona de conforto, chamada
Vaticano, ele parece desconsiderar os fiéis de outras religiões, os quais
dividem a casa a partir de crenças em deuses diferentes. Sua guinada secular,
quem sabe, já constitui uma reação ao fundamentalismo islâmico, que ameaça o
mundo cristão em seu território natural – a Europa.
A Campanha da Fraternidade no Brasil tem
o objetivo geral de
Assegurar o
direito ao saneamento básico para todas as pessoas e empenharmo-nos, à luz da
fé, por políticas públicas e atitudes responsáveis que garantam a integridade e
o futuro de nossa casa.
O
lema escolhido pelo CONIC é uma interpretação forçada de Amós (lunático bíblico
que não se reconhecia como profeta, mas previu muito fogo para as nações
vizinhas e desterro de Israel): “Antes corra o juízo como as águas, e a justiça
como ribeiro perene”. Jeová estava cansado dos holocaustos em seu nome,
melindrado com a idolatria de outros deuses (mais uma vez). Também ele evoluiu
através dos tempos, clamando por juízo e justiça. A propósito, juízo e direito
podem ser tomados como sinônimos? Outra questão: por que essa obsessão pela
leitura do Velho Testamento? Ele remete mais facilmente aos temas seculares?
O objetivo de saneamento básico para
todos não é uma intromissão da religião na política? O estado tem condições de
atender cem por cento à demanda, sem afetar ainda mais o meio ambiente?
Desenvolvimento autossustentável é um mito moderno. Não há recursos suficientes
para inverter o vetor da degradação em seu curso acelerado. As nações mais desenvolvidas
do mundo são, concomitantemente, as que mais poluem o ar, a água e o solo. A
vida é assassinada no atacado.
Por derradeiro, o ecumenismo da campanha
se refere ao planeta como um todo, ao Brasil, ou ao conselho de cinco igrejas?
(Publicado em meu livro Considerações neoateístas.)