sexta-feira, 22 de novembro de 2019

CAMPO - CIDADE



    Como poucos indivíduos, vivo uma constante mudança do espaço, representada pelos opostos campo – cidade.
        Antes de vir para Curitiba, morei um ano e meio no rincão, para onde retorno assim que se me oferece uma oportunidade.
Entre 2 e 8 de novembro, lá estava, acolhido pela casa paterna. Para mim, já consiste um prazer preparar o almoço para o pai e o irmão no fogão a lenha. Desde cedo, é uma alegria ver o sol iluminar o dia, a ouvir os animais em volta da casa, no arvoredo, no campo aquém e além dos alambrados.
Na semana seguinte, outra vez me vejo imerso nesta cidade grande, a caminhar por seus logradouros e parques, a dirigir por suas amplas avenidas, a frequentar seus eventos culturais, shoppings, livrarias, restaurantes...
A mudança contínua entre campo e cidade, entre natureza e artifício, não esgota em mim a saudade de lá (a estar aqui) e tampouco a necessidade de estar aqui de tempo em tempo.

sexta-feira, 1 de novembro de 2019

RINCÃO TERRUNHO

       Caio Fernando Abreu referiu-se carinhosamente a Santiago como Passo da Guanxuma. Assim ele se expressou na crônica belíssima Raiz no Pampa, cuja motivação foi a ida à Terra dos Poetas para a inauguração de sua foto na galeria dos escritores santiaguenses no Centro Cultural.
        Antes de querer imitar Caio, também atribuo um nome afetivo para o lugar em que nasci e para onde retorno com frequência: Rincão. A primeira referência topográfica foi Rincão dos Machado, depois rincão apenas, que designa ainda o rincão e Santiago ao mesmo tempo. À medida que me afasto do rincão terrunho, conduzido pelos móveis universais da cultura, mais necessidade tenho de retornar a ele (para beber de sua água).
        O rincão já foi o universo inteiro durante minha infância. Eu pertencia a ele em toda minha pequenez, não determinante para ignorar a beleza que o constituía naturalmente: campos, matas, sangas, açudes, o rio Rosário, cavalos, bois, pássaros, manhãs azuis... Com o meu crescimento e, consequente, partida para mundos maiores, o rincão migrou para dentro de mim (a aumentar sua dimensão afetiva com a distância).
        Hoje deixo Curitiba rumo à minha Santiago, onde devo lançar Claro & Profundo – Poemas Reunidos na XXI Feira do Livro (no dia 9 de novembro, às 19 horas). Depois de 25 anos, viajo de ônibus outra vez, para curtir a alegria do retorno mais demoradamente (como o fazia em minha juventude).
        O rincão dentro de mim é poesia, uma metáfora que me remete à realidade de um lugar, ao qual ainda pertenço de certa forma. Esse voltar a Santiago, como escreveu Caio, é “um assunto espiritual”.

        Curitiba, 1º de novembro de 2019.

quarta-feira, 30 de outubro de 2019

DUAS OBSERVAÇÕES (AOS CITADORES DE NIETZSCHE)


          Nietzsche nunca foi citado antes com a frequência destes dias. Duas observações depreendem desse modismo: o filósofo é mal interpretado cada vez mais; e seus citadores ignoram a contradição em citá-lo à revelia.
         Mais de 90% desses pretensos nietzschianos são religiosos, cristãos em sua maioria, que deveriam evitar a contundência da filosofia do martelo. Caso observassem a coerência, eles citariam Platão, Agostinho de Hipona, Tomás de Aquino, Duns Escoto, entre outros.
      Inobstante a liberdade de todo sujeito do enunciado, que é inquestionável nestes dias, a citação de Nietzsche exige honestidade intelectual, atributo que distingue os nietzschianos dos quatro costados. 
            Nenhum cristão há de concordar com o aforismo 15 de O Anticristo:
No cristianismo, nem a moral nem a religião possuem qualquer ponto de contato com a realidade. Apenas causas imaginárias (“Deus”, “alma”, “eu”, “espírito”, o “livre-arbítrio” – ou o “não livre”); apenas efeitos imaginários (“pecado”, “salvação”, “graça”, “castigo”, “perdão dos pecados”). Uma relação entre criaturas imaginárias (“Deus”, “espírito”, “alma”); uma ciência natural imaginária (antropocêntrica; carência completa da noção de causas); uma psicologia imaginária (apenas mal-entendidos acerca de si mesmo, interpretações de sensações gerais agradáveis ou desagradáveis, por exemplo, dos estados do nervus sympathicus, com a ajuda da linguagem de sinais da idiossincrasia moral-religiosa – “arrependimento”, “remorso”, “tentação do Demônio”, “proximidade de Deus”, uma teleologia imaginária (“o reino de Deus”, “o Juízo Final”, “a vida eterna”). – Esse puro mundo de ficções se distingue muito a seu desfavor do mundo dos sonhos pelo fato de que este reflete a realidade, enquanto ele a falsifica, desvaloriza, nega.

         Nietzsche é citado pelos cristãos, via de regra, de uma forma descontextualizada. A propósito, essa prática não exclui a própria Bíblia, sempre recortada versículo a versículo (segundo o interesse do pregador ou sermonista).
          Nada como ser nietzschiano. 

terça-feira, 29 de outubro de 2019

A POESIA E SEUS ELEMENTOS


    O Modernismo revolucionou as artes, sobretudo a literatura, a romper com as normas acadêmicas. A poesia se libertou dos padrões anteriores, da estrofação regular, dos versos isossilábicos, do ritmo, da rima.
     Essa liberdade, todavia, não é definitiva, radical, na medida em que os próprios poetas modernistas continuam a produzir formalmente como desde sempre.
        Carlos Drummond de Andrade era modernista, iniciador da segunda geração (a propósito), e constitui o melhor exemplo do que afirmo no parágrafo acima. Ele publicou vários sonetos e outras formas fixas de poema.
         Uma prova disso:

                     O mundo é grande
O mundo é grande e cabe
nesta janela sobre o mar.
O mar é grande e cabe
na cama e no colchão de amar.
O amor é grande e cabe
no breve espaço de beijar.

        O primeiro, o terceiro e o quinto versos contam seis sílabas poéticas, com tonicidade na segunda, quarta e sexta sílabas; poéticas. O segundo verso, tonicidade na quarta e oitava; o quarto verso, na segunda, sexta e oitava sílabas; e o sexto verso, na segunda, quarta e oitava sílabas.
      Não bastasse o paralelismo, que é a repetição da mesma estrutura frasal, o ritmo do poema também é determinado pela métrica (com acentuação nas mesmas sílabas):

2 – 4 – 6
      4        8
2 – 4 – 6
2        6 – 8
2 – 4 – 6  
2 – 4        8

         Todo iniciante na arte literária deve compreender que liberdade formal não implica escrever poesia como se fosse prosa, simplesmente a mudar de linha antes de chegar ao fim. Um poema com estrofes regulares e versos irregulares é um monstrengo, independentemente de seu conteúdo.

sexta-feira, 25 de outubro de 2019

NÚMERO 1



       O que você acha (ou pensa) sobre essa pintura?
      Caso seu julgamento for depreciativo, saiba que o quadro é um dos mais caros da história: U$ 149,70 milhões de dólares (vendido pela Sotheby’s de Nova Iorque).
         O autor é Jackson Pollock (1912-56), pintor norte-americano, eminente representante do expressionismo abstrato.
         A arte de Pollock, segundo Lucie-Smith (1945), “era uma afirmação dos direitos de sonhos em contraposição ao mundo exterior de fatos; [...] uma rejeição ao mecanismo”.
         Ele poderia pintar antes do surgimento da tecnologia, como pintaria durante ou depois da revolução industrial. Não dependeu de técnicas já consagradas, tampouco teve referência a tudo o que fora realizado esteticamente.
         Palavras do artista:

Minha pintura não vem do cavalete, mal estico a tela antes de pintar. Prefiro prendê-la, sem chassi, sobre a parede ou o piso duro. Preciso da resistência de uma superfície firme. Sinto-me mais à vontade no chão, mais próximo, mais parte da pintura, porque assim posso caminhar ao seu redor, trabalhar dos quatro lados e literalmente me fazer presente nela.

         A grande inovação de Pollock era seu tratamento dado ao espaço (Lucie-Smith, 1945):

Temos consciência da superfície da pintura, mas também do fato que a maior parte da caligrafia parece flutuar um pouco atrás dessa superfície, num espaço deliberadamente comprimida e privada de perspectiva.

         Muita coisa é possível dizer sobre artista e obra. Caso você não entenda nada, por favor, não os julgue depreciativamente.

terça-feira, 22 de outubro de 2019

REDES SOCIAIS: UMA SUBCULTURA DA APARÊNCIA


           


           O Facebook, o Instagram, o Whats, entre outras redes virtuais efetivam a subcultura da aparência, cuja linguagem é baseada na imagem. O verbal, depois de sofrer toda sorte de fragmentação, está à beira de ser inexoravelmente extinto.
        A conveniência para que tal ocorra também se  caracteriza pela estratégia pós-moderna de falsear o real, onde o ego do novo aculturado digitalmente se debate em meio à mediocridade, à insignificância.
         A (auto)imagem publicada segue um padrão, qual seja, o de ilustrar o espetacular, sem precisar onde, quando, como ou por quê. Essa falta de referência cria o glamour, na medida em que deixa transparecer certa naturalidade (facilmente observada como embuste, camuflagem). Exemplo recorrente: o usuário publica uma selfie ante uma construção majestosa ou ante o mar verde.
         O contexto de espaço e de tempo é apenas aludido pela imagem, seguida ou não da expressão interjetiva “gratidão!”. A relevância insinuada para si com a imagem de fundo, que pode ser qualquer praia do planeta, denuncia-se com a interjeição aposta.
         O texto apresenta como que uma incoerência profunda: a naturalidade de se encontrar numa praia distante é negada pelo que fica subentendido com a interjeição. O que se subentende por “gratidão!”?  Aquele que a expressa, malgrado exaltar sua condição de turista, expõe de forma inconsciente o esforço pessoal quase impossível de estar inacreditavelmente ali.
         Muito há que se dizer dessa subcultura, a qual é produto da pós-modernidade, tempo de radicalização individualista, e em que prevalece o parecer como modo de existência.

domingo, 20 de outubro de 2019

sexta-feira, 18 de outubro de 2019

domingo, 13 de outubro de 2019

CRÔNICA DE GUARAQUEÇABA

A água da baía é interrompida por dezenas de ilhas, e a linha do horizonte se desenha com a sobreposição de vários recortes da serra que se estende na lonjura.
Os golfinhos brincam de aparecer e desaparecer na superfície morna da baía para a exclamação dos turistas, e o céu é incomparavelmente azul como as manhãs de outubro.
A cidadezinha se alonga entre a praia e o morro (coberto por uma mataria exuberante), com edificações coloridas de vermelho, amarelo, azul e branco. Restaurantes, cafés, mercearias, hotéis e pousadas fazem um cerco ao pier. Num plano mais elevado, localiza-se a prefeitura, a câmara, a igreja católica e o templo evangélico. Malgrado o isolamento geográfico, os guaraqueçanos são bem abrigados por sua religiosidade cristã.
Um dos costumes ancestrais, que precede a chegada dos portugueses, conservou-se através dos séculos: o direito ao ócio. Até a meia-tarde, os homens permanecem à sombra, descansados da vida. Outro traço cultural distintivo do interiorano consiste em cumprimentar uns aos outros na rua, não mais observado nos habitantes da cidade grande.
A sede constitui porto de partida para diversos pontos turísticos, que são acessados por lanchas voadeiras: Ilha das Peças, Parque Nacional do Superagui, Ilha Rasa, Ilha Pinheiro, Salto Morato, Sebuí, Ilha dos Papagaios, Ilha das Gamelas, Ilha Trepa-Pau, Ilha dos Porcos, Ilha das Bananas, Ilha das Laranjeiras e diversas reservas naturais.
Guaraqueçaba expõe um aspecto interessante do turismo nestes dias, ainda atraído pelo glamour da Europa, da Oceania e dos Estados Unidos. As viagens de longa distância passaram a representar o poder consumista de uma classe de pessoas que emerge do anonimato econômico e social.
Poucos desses viajantes internacionais (curitibanos) conhecem Guaraqueçaba, que não fica do outro lado do mundo, mas do outro lado da baía.

quinta-feira, 10 de outubro de 2019

MORAL CONSTITUÍDA E MORAL CONSTITUINTE


       O aspecto mais interessante no estudo da moral é a contradição entre o que foi estabelecido como norma de conduta e a sua transgressão sistemática.
A primeira explicação para compreender a relação norma–desobediência é genealógica: aquilo que se consubstancia como desobediência vem antes da instauração normativa, não o contrário.
A prática de matar o próprio semelhante (quase exclusiva do homo sapiens), por exemplo, precede a todo estatuto que preceitua o não matar. O assassinato, ainda que esporádico, desde sempre exigiu sua negação como norma para o bem da sociedade, do clã à humanidade como um todo. Apenas a guerra rompe com o direito natural à vida.
Em todas as culturas em que os homens mentem, há necessidade de se impor normativamente o não mentir. No âmbito jurídico, a prática adquire denominações eufemísticas, como falta com a verdade, falso testemunho, crime de perjúrio etc. Mentiras que podem sofrer sanções, em razão dos danos causados ao outro (pessoa ou instituição).
Notadamente, assassinato e mentira são incomparáveis pela gravidade do mal que causam um e outra. Ao matar seus semelhantes numa guerra, o homem mente a si mesmo sobre certos perigos que corre ele, os parentes, amigos e compatriotas se não tomar a iniciativa.
Duas morais são possíveis em relação à mentira: a constituída e a constituinte. A primeira consiste na norma expressa, de que o homem deve falar a verdade e somente a verdade (como num juramento legal). A segunda não está posta, flerta com a verdade, permissiva, muito próxima do engano consentido (bem como do autoengano).
Os exemplos da moral constituinte são tão numerosos quanto às intenções e aos discursos que permeiam as relações interpessoais. O simples “bom dia!” num ambiente de trabalho, onde a concorrência para subir dentro da empresa é acirrada, encobre maledicência, inveja, ódio. Nas redes sociais, a interjeição “linda!” sob a selfie não parece plenamente honesta. O incitamento do pastor aos fiéis para que estes abram suas carteiras, além do dízimo, justifica que assim é a vontade de Deus. Ad nauseam.
Algumas mentiras ganham estatuto de verdade, quando não é possível a omissão, o silêncio. Elas são necessárias para viabilizar o entendimento, elevar a autoestima, lucrar com o negócio, manter o relacionamento etc. O nome dessas permissividades é moral constituinte.

domingo, 6 de outubro de 2019

CARTA ABERTA


CARTA ABERTA AOS MEUS PARENTES
ESQUERDISTAS

      Esta carta se endereça aos meus parentes que, por um motivo obscuro, preferem se filiar à esquerda, ao socialismo, ao comunismo, malgrado a comprovação histórica de fracasso desse espectro político (do qual a debacle soviética constitui seu exemplo mais irrefutável). Ludwig von Mises atribui à ignorância, à inveja e ao ódio essa sanha anticapitalista, que contradiz, a propósito, o modus vivendi abertamente capitalista em que vivem todos.
      Minha proposta é de pedir-lhes uma tarefa simples: abrir o Manifesto do Partido Comunista, página 50 (ou em torno de), e ler as medidas de Marx e Engels para o advento de um mundo melhor. Certamente, vocês já realizaram uma leitura atenta do conteúdo comunista dos pensadores supracitados, a compartilhar com cada uma de suas premissas.
      Eis a relação de medidas que foi publicada no Manifesto do Partido Comunista, em 1848, fomento de revoluções em diversos pontos do planeta, com a construção de estados totalitários:

1. Expropriação da propriedade fundiária e emprego das rendas fundiárias para despesas do Estado.
2. Pesado imposto progressivo.
3. Abolição do direito de herança.
 4. Confiscação da propriedade de todos os emigrantes * e rebeldes.
5. Centralização do crédito nas mãos do Estado, através de um banco nacional com capital de Estado e monopólio exclusivo.
6. Centralização do ** sistema de transportes nas mãos do Estado.
7. Multiplicação das fábricas nacionais, dos instrumentos de produção, arroteamento e melhoramento dos terrenos de acordo com um plano comunitário.
8. Obrigatoriedade do trabalho para todos, instituição de exércitos industriais, em especial para a agricultura.
9. Unificação da exploração da agricultura e da indústria, atuação com vista à eliminação gradual da diferença *** entre cidade e campo.
10. Educação pública e gratuita de todas as crianças. Eliminação do trabalho das crianças nas fábricas na sua forma hodierna. Unificação da educação com a produção material, etc.

      À exceção da última medida, cujas metas o capitalismo evolui continuamente para atender melhor do que seu sistema de economia antagônico, pergunto-lhes se concordam com os disparates enumerados na citação acima.
      Para esclarecimento (tema bem dissertado por Kant), limito-me a analisar a primeira medida: “expropriação da propriedade fundiária e emprego das rendas fundiárias para despesa do estado”. Com expropriação proposta, como a terra produziria rendas para o estado? O estado teria que depender de pessoas físicas ou jurídicas que trabalhassem na terra ou que a explorassem sem a produção de riqueza para essas pessoas.
      Quem pagaria o “pesado imposto progressivo” – expresso na segunda medida?
      Uma Europa comunista, coerente com a medida 4, não daria refúgio a tantos emigrantes africanos e asiáticos como o faz nestes dias a Europa capitalista. A propósito, quais seriam os “rebeldes”?
      Involuntariamente, ultrapassei o proposto na medida 1, traído pela indignação de ver o absurdo fazer tantos adeptos. Neste aspecto, penso que os parentes entenderão minha intenção honesta, cujo grau de alteridade não pode ser refutado pelo direito que cabe a cada um de vocês.
      Um abraço a todos!
     
      Curitiba, 6 de outubro de 2019.


Froilam de Oliveira    

quinta-feira, 3 de outubro de 2019


AGENDA CHEIA: NARCISISMO E SOLIDÃO


   O tempo é de pessoas com suas agendas cheias, independentemente do status social de cada uma delas. Elas não mais dispõem de horário vago de compromissos cotidianos ou excepcionais.
        Para a confirmação desse fenômeno pós-moderno, basta que você organize um evento qualquer e convide seus amigos e conhecidos. A maioria dará uma desculpa de não comparecimento, de algo inadiável já marcado anteriormente.
        Você corre o risco de contar com poucas presenças ou com nenhuma delas, o que não mede a importância do evento, ou sua importância como organizador do evento.
        Da forma mais delicada possível, com salamaleques verbais, mente-se sobre a agenda lotada. O contexto desse autoengano é o direito que cada um dá à própria liberdade. Por trás desse comportamento indiscutível, agiganta-se o narcisismo.
        O autoisolamento narcísico, via de regra, involui para um estado em que a pessoa, ao perder a referência do outro, percebe-se sozinha no mundo e passa a sofrer de solidão.

sexta-feira, 27 de setembro de 2019

SUICÍDIO: UMA QUESTÃO FUNDAMENTAL



              Uma palestra realizada na FAE – Centro Universitário sobre o suicídio projetou um slide, que me fez pensar com tristeza na noite passada: o Rio Grande do Sul figura em primeiro lugar no ranking de estados pelo número de mortes autoprovocadas no Brasil.
         Os números são dispensáveis para uma reflexão séria, que faço a seguir, cuja validade independe de quanto e sim de por quê. Um caso de suicídio já é muito para a efetivação de uma tragédia que abala profundamente toda apreciação positiva da vida
         A partir do tratamento de indivíduos frustrados em sua intenção suicida, psicólogos, psiquiátricas e estudiosos elencam uma relação de causas possíveis do ato em si. A tentativa de suicídio pode ser comparada ao suicídio? A diferença é apenas de grau, de menos ou maior agressividade?
         A palestrante fez referência a um contrato de não suicídio, assinado durante o internamento psiquiátrico, documento que parece prevenir o contratante da responsabilidade ou do sentimento de culpa. Esse contrato é de uma potência cômica irreprimível. Nenhuma assinatura foi aposta no papel por aqueles que lograram êxito no ato contra a própria vida. Ou a morte autoprovocada constituiria uma assinatura, num tempo e espaços incapazes de serem previstos?
         Por que o Rio Grande do Sul é o melhor no ranking? O que acontece com os gaúchos, reconhecidos pelo traço cultural da positividade? Alguma coisa na água (do chimarrão), no ar, na terra, no fumo, no churrasco, na alma, na vida? Os dois últimos itens (alma e vida) não distinguem os sulinos de outros brasileiros, todos a contribuir para aumentar a taxa de suicídio.
         Independentemente do lugar de origem, idade, cultura, nível de instrução e economia, os homens governam suas vidas buscando a felicidade, e procurando evitar emoções desagradáveis (escreve António Damásio). O suicídio é a negação dessa condição existencial, prova de que há uma anomalia psíquica em nossa sociedade.

quinta-feira, 26 de setembro de 2019

NADA MAIS NATURAL



Malgrado a evolução do homem no sentido de conhecer, explorar e subjugar a natureza, no fundo, ele ainda é dependente dela a cada respiração.
            O sentimento de grandeza que o coloca muito acima dos demais seres vivos, base subjetiva para o antropocentrismo, nada tem de nobre vis-à-vis ao seu comportamento agressivo e destruidor.
            As conquistas da cultura humana não podem ocorrer à custa de alguma degradação externa, ambiental.
 Embora a consciência do certo e do errado tenha despertado o homem da animalidade, os danos causados à vida de um modo geral já ultrapassam os limites do recuperável.
Sem essa consciência, todavia, provavelmente o homem não teria sobrevivido até hoje neste paraíso chamado Terra. O amplo domínio ainda cabe a seus instintos, a suas pulsões – nada mais natural.   

segunda-feira, 23 de setembro de 2019

EIS A PRIMAVERA


I
         O homem emergiu da natureza por intermédio da cultura, que consiste em todas as crenças, ideias, linguagens, costumes, artes, instituições, tecnologias etc. Desde a primeira ferramenta (feita de pedra ou madeira), ele passou a ser humano. O processo foi demorado e difícil no começo, de completa dependência do meio natural, onde nossos ancestrais coletavam e caçavam para a sobrevivência. Com a descoberta e implementação da agricultura, avançamos para outro estágio, de exploração da natureza. O próprio termo “cultura” se origina do latim “colere”, que significa “cultivar plantas”. A demanda por recursos naturais se acelerou desde as comunidades agrícolas à era industrial, quando o poder extrativista ganhou maioridade, iniciando-se uma corrida de exploração econômica e de destruição ambiental.

II
         O fato de o homem se tornar independente da natureza traz algumas consequências negativas para a vida (de ambos), que hoje se sabe comparáveis ao suicídio. Esse saber, todavia, não foi assimilado pela humanidade, que potencializa sua capacidade destrutiva ao se organizar em estados nacionais (cujo maior objetivo e aumentar continuamente o PIB.

III
         Antes que a morte chegue a Terra, ainda é possível aprender sobre sua capacidade de renovação (ou regeneração) a partir da posição em que se encontra na órbita translacional. Com a maior ou menor distância do Sol, ela esfria abaixo de 0ºC ou esquenta acima de 50ºC. Entre inverno e verão, duas estações representam um equilíbrio: primavera e outono.

IV
         Hoje é chegada a primavera no hemisfério sul. Os campos ainda se tornam verdes, as matas se cobrem de flores, os pássaros cantam... No hemisfério norte, o outono chega tão agradável em sua cor e doura.

V
         O processo de aculturação nos afastou da natureza, tornando-nos incapazes de usufruí-la de uma forma harmônica. Na cultura moderna, pós-industrial, perdemos a capacidade de nos renovar ciclicamente, não mais experimentamos uma primavera em nossos espíritos (quase sempre enfastiado pela mesmice). Toda passagem de ano nos ilude com uma mudança, quando fazemos festa, mas, outra vez, a realidade nos apreende em seguida.

VI
         O retorno à natureza é materialmente impossível, na medida em que já foi ultrapassada a área de sua intersecção com a cultura humana. Felizmente, não é tarde para buscarmos uma reaproximação espiritual com ela. Nestes dias, temos mais uma oportunidade de nos permitir um rejuvenescimento com flores, borboletas, pássaros, manhãs azuis...

quarta-feira, 18 de setembro de 2019

PERCEPÇÃO E CURA


        Um critério irrefutável de normalidade é a pessoa buscar o prazer e evitar a dor. Freud denominou essa tendência de Princípio do Prazer (ou Princípio da Realidade, quando se considera o mundo exterior).
    O sofrimento psíquico parece ter como um de seus sintomas o não querer se livrar dele. O indivíduo se afasta dos demais membros de sua família, de seu círculo de amigos ou colegas de trabalho, enfim, dos ambientes sociais a que pertence obrigatoriamente. A causa da doença não mais denuncia um problema exógeno, como pensa muita gente grande, mas reporta ao interior do próprio indivíduo.
         Destarte, o que é anormal no depressivo, por exemplo?
         Em primeiro lugar, a inverter a ordem acima, constitui a forma como o indivíduo reage às injunções de seu entorno social e, em segundo, a ocultação do desastre instaurado em sua psique.
         A percepção da doença, o que é paradoxal, ocorre pelos outros que circundam o universo singular do depressivo. Tal percepção, em muitos casos conhecidos, representa a parte inicial e indispensável para o processo da cura. Nesse aspecto, reescreve-se o bordão foucaultiano, “vigiar e punir”, para “perceber e curar”.
         O indivíduo com o problema psíquico tem que despertar da letargia, do solipsismo em que vive (via de regra). Ele necessita desejar visceralmente não querer o sofrimento – antes que a patologia evolua para pior.

domingo, 15 de setembro de 2019

A FALÁCIA DO RELATIVISMO


      Alguns psicólogos, no afã de ampliar ad infinitum o campo de sua atuação, asseguram-nos que os conceitos de normal e patológico são “extremamente relativos” (BOCK, 2008).
Os vieses culturais, por mais diferentes que se apresentam entre duas sociedades, entre dois povos, não permitem a avaliação pelo relativismo extremo. Obviamente, esses estudiosos tomam uns poucos exemplos como referência de suas generalizações apressadas.
A essa falácia pseudocientífica se juntam antropólogos e sociólogos.
HARRIS (2013) cita um caso de relativismo:

Se descobríssemos uma nova tribo na Amazônia amanhã, nenhum cientista assumiria a priori que essas pessoas teriam saúde física e prosperidade material excelentes. O que faríamos seria averiguar a expectativa de vida da tribo, sua ingestão diária de calorias, a porcentagem de mulheres mortas no parto, a prevalência de doenças infecciosas, a presença de cultura material etc. Tais questões teriam respostas, e elas provavelmente revelariam que viver na Idade da Pedra exige alguns sacrifícios. Porém, notícias de que esse bom povo gosta de imolar seus primogênitos para deuses imaginários fariam alguns antropólogos (talvez a maioria deles) dizerem que essa tribo possui um código moral alternativo, tão válido e irrefutável quanto o nosso.

O filósofo e neurocientista contemporiza que “alguns antropólogos têm se recusado a seguir seus colegas nesse princípio intelectual”.
O exemplo de uma tribo da Amazônia é extremo, uma exceção para o grande número de sociedades que habitam o planeta nestes dias e que se assemelham no espectro de suas culturas. Toda diversidade é pouco para ignorar as similitudes. Afinal, trata-se do mesmo homo sapiens.

BOCK, Ana Mercês Bahia. Psicologias: uma introdução ao estudo da psicologia / Ana Mercês Bahia Bock, Odair Furtado, Maria de Lourdes Trassi Teixeira. – 14ª edição – São Paulo: Saraiva, 2008, p. 348.

HARRIS, Sam. A paisagem moral: Como a Ciência pode determinar os valores humanos / Sam Harris; tradução Claudio Angelo. 1ª ed. – São Paulo: Companhia das Letras, 2013, pp. 26 e 27.

terça-feira, 10 de setembro de 2019

DIA 31 DE AGOSTO


        O dia 31 de agosto não constava no Calendário Juliano, criado pelo ditador Júlio César no ano 46 a. C. Os senadores da República decidiram fazer uma homenagem ao político com o nome de um mês. Quintilis ganhou a nova denominação de Julius.
O início do ano mudara antes, de 1º de março para 1º de janeiro. Dessa forma, o mês quinto passou a ser o sétimo.
Esse descompasso linguístico persiste até hoje, demonstrável nos radicais (que sofreram metaplasmo ou não) de setembro, outubro, novembro e dezembro. Antes da mudança do primeiro do ano de março para janeiro, esses meses representavam sétimo, oitavo, noveno e décimo na sequência dos ordinais.



       Quatro décadas mais tarde, o imperador César Augusto exigiu uma homenagem semelhante à atribuída a Júlio César. Condição imposta: o mês dedicado a ele seria subsequente a Julius, com o mesmo número de dias.
A solução mais simples foi emprestar um dia de um mês anterior e somar aos trinta dias de Sextilis, que passou à denominação de Augustus.
O Senado Romano fazia alguma coisa mais que festas e tramoias: puxava o saco de quem mandava de fato na república ou no império.

segunda-feira, 2 de setembro de 2019

INDIVIDUALISMO E DOENÇA


        O homem é um animal social, isso se sabe desde antes de Aristóteles dizer algo nesse sentido. Para ser mais preciso, desde antes do que se convencionou denominar “civilização”, o homo sapiens evoluiu graças à capacidade de se organizar em grupos cada vez maior. A propósito, a civilização pode ter alterado a natureza humana a ponto de não constituir um exagero nietzschiano responsabilizá-la por uma degeneração (que mina suas bases).
         O tecido social não oculta mais seus pontos de fragilidade, de ruptura, onde as células do mal se desenvolvem por “geração espontânea”. Certamente, o homem primitivo não trazia em seu pool genético qualquer propensão ao individualismo radical bastante observado nestes dias.
         A tendência ao solipsismo é incontornável. As pessoas passam a se isolar em apartamentos (cujo significado é separação, afastamento). Mesmo conectadas na grande rede de computadores, elas são cada vez mais individualistas – e solitárias.  Nesse estado, ou internalizam os efeitos do isolamento, como solidão, depressão, loucura e morte, ou os exterioriza em palavras e gestos antissociais, como maledicência, espezinhamento (troll), violência e morte.
         Sigmund Freud escreveu em O futuro de uma ilusão (ensaio magnífico) que “todo indivíduo é virtualmente inimigo da civilização”, que esta “tem de se erigir sobre a coerção e a renúncia ao instinto”. O problema (que se agiganta na pós-modernidade) consiste no contrário: os indivíduos não abrem mão de seus instintos e pulsões, que são racionalizados como a própria vontade, o próprio Eu.

sexta-feira, 23 de agosto de 2019

FILOSOFAR


A filosofia sofre a pecha de ser uma atividade intelectual sem resultados positivos, para não dizer inútil de cara. Essa visão do senso comum prepondera na Academia, ainda dominada pelo conhecimento técnico e científico.
         Em seu último romance, Hereges (p. 24), Leonardo Padura assim descreve o personagem Mario Conde:

Conde começou a viver uma fase de prosperidade econômica que durou vários anos e que lhe permitiu dedicar-se, até com certo desregramento, às atividades que mais lhe agradavam na vida: ler um bom livro e comer, beber, ouvir música e filosofar (falar merda, para ser claro) com seus mais velhos e encarniçados amigos.

         A transcrição desse excerto do ficcionista cubano me serve de mote para dizer que, na realidade, as pessoas não leem bons livros e filosofam tampouco. A maioria delas vive a comer, a beber e a ouvir música.
         Não posso perguntar que tipo de música mais se ouve em nosso país, qual a sua qualidade artística, ou que bem efetivo propicia a seus ouvintes, sob pena de receber comentários desaforados por intermédio das redes.
         Essa pergunta e tantas outras que povoam o meu, o nosso dia a dia, não são em vão, na medida em que vêm imediatamente antes de uma escolha, de um sim ou de um não. O pensar sobre as próprias escolhas, antes de fazê-las de uma forma inconsequente, significa filosofar (tão necessário à existencialidade humana).

segunda-feira, 19 de agosto de 2019

FOGO PARA ILUMINAR


       O fogo foi descoberto por uma espécie anterior ao homo sapiens. Provavelmente, a nossa espécie foi obrigada a fazer a mesma descoberta em algum momento de sua evolução, para a própria sobrevivência. Numa ordem apenas imaginada para as funções múltiplas desse elemento natural, a de iluminar o ambiente se coloca em primeiro grau de importância.
         Ontem, ao visitar o museu da Colônia Witmarsum, no município de Palmeira (PR), chamou-me a atenção os tipos de lamparinas, lampiões e lanternas reunidos sobre um mesmo móvel. Os modelos vários aumentavam em simpleza e rusticidade assim que recuavam no tempo, talvez um século, um milênio talvez. Todos foram de uso cotidiano em épocas pretéritas, desde muito antes da eletricidade.
         A coleção me fez lembrar o candeeiro que fazíamos no Rincão dos Machado, cuja simplicidade era tanta que já caiu no esquecimento de seus usuários idosos. A luminária consistia numa mecha de pano retorcido, geralmente o resto de lençol de algodão, uma vasilha de lata ou alouçada (um prato inservível) e banha como combustível. Seu uso ocorria nas horas de escassez extrema, quando o querosene era produto de luxo.
         A Colônia Witmarsum, todavia, não conheceu o candeeiro rústico do rincão, ou seus moradores antigos não acharam conveniente transformá-lo em peça de museu.
         O advento da eletricidade decretou o fim de todas as luminárias, que diminuíam a escuridão de noites remotas em círculos concêntricos cada vez mais amplos – à medida que um modelo melhor era desenvolvido para conter e controlar o fogo.

sexta-feira, 16 de agosto de 2019

NOTÍCIA TRISTE

A notícia da morte de Fábio Barcelos Paiva me deixou triste no dia de ontem. (Ainda que tardiamente, expresso meu sentimento de pesar à família enlutada.)
Penso o homem como um ser trágico, nem tanto porque está fadado a morrer um dia, mas principalmente porque sabe de sua morte inexorável e nada pode fazer para evitá-la.
A tragédia é maior, quando Moira se antecipa, no momento em que a pessoa menos a espera, distraída com as alegrias da vida.
Ao ler sobre o asfixiamento sofrido pelo Fábio no interior de um silo de soja, recordei-me de outros dois trabalhadores que morreram da mesma forma, nos silos da já extinta Cooperativa Tritícola Santiaguense (bairro Belizário). Salvo engano, foi no ano de 1978.
Como morava na rua Padre Artur, bem próximo dos silos, pude acompanhar o resgate dos dois corpos do interior da montanha de grãos (em que o secador criava um ponto de sucção).
Esses fatos trágicos deveriam servir de "start" para uma nova postura dos empregadores públicos ou privados, que tornasse prioridade a instrução, o conhecimento que previne o acidente.
O empregado precisa lidar com as máquinas depois de muito bem instruído, obviamente, mas necessita saber um pouco mais sobre si mesmo. As empresas dispõem de tempo e espaço para envolver seus "colaboradores" em atividades pensadas para esse fim.
A razão humana, mais que estar a serviço do capital, da produção de riqueza, tem a função de ampliar a vida em todas as suas dimensões, malgrado a finitude trágica que sabemos demarcá-la no tempo e no espaço.

quinta-feira, 15 de agosto de 2019

IMPOSIBLE NO LLORAR



A Argentina, imposible no llorar, passa por uma crise econômica, cujo precedente remonta à década de 1990. (Para a Carta Capital, todavia, o problema se deve ao governo de Mauricio Macri.) O atual presidente assumiu em dezembro de 2015, inicialmente a cortar os gastos públicos (uma herança dos doze anos kircheneristas). Em maio de 2016, quando estive em Buenos Aires, La Nación publicava que, depois de um arrocho tremendo, “la Casa Rosada decidió abrir la caja”. O ajuste fiscal não foi suficiente para assegurar a inflação e consequente desvalorização do dinheiro argentino, o que forçou o governo a pedir socorro ao FMI. O resultado desse fracasso em recuperar a economia é a volta quase certa de Cristina Kirchner (como vice). Buenos Aires, a cada ano que passa, perde um pouco de sua beleza e de sua altivez cultural. Imposible no llorar!