sábado, 5 de dezembro de 2015

ATEUS IMATUROS?

Olavo de Carvalho, que se autoproclama o maior filósofo brasileiro da atualidade, publica, em nota de rodapé (66) do livro O jardim das aflições, a seguinte opinião:

[…] A história do ateísmo militante é uma sucessão prodigiosa de intrujices. É que o ateísmo, em geral, é uma opção de juventude, prévia a qualquer consideração racional do assunto, e uma vez tomada não lhe resta senão racionalizar-se a posteriori mediante artifícios que serão mais ou menos engenhosos conforme a aptidão e a demanda pessoal de argumentos. Não se conhece um único caso célebre de pensador que tenha chegado ao ateísmo na idade madura, por força de profundas reflexões e por motivos intelectuais relevantes. […] O ateísmo militante é, por si, um grave sinal de imaturidade intelectual.

Antes de rebater o autor desse libelo, duas considerações são necessárias:
Na história da Filosofia, nunca houve uma hierarquização categórica entre pensadores de uma mesma época, independentemente da “extensão e persistência do influxo do gênio sobre a vida e as ideias dos homens”. Assim se expressa Will Durant, para justificar sua escolha dos dez “maiores” (que ele grafa entre aspas). Destarte, não podemos dizer quem é maior entre Platão e Aristóteles, a despeito da distância histórica que nos separa desses dois filósofos.
A propósito, os gregos distinguiam doxa de episteme, opinião de conhecimento. Nesse sentido, anunciei como “opinião” o excerto de Olavo de Carvalho. Ainda estou para questionar se tais enunciados alcançam esse estatuto.
A primeira frase, “A história do ateísmo militante é uma sucessão prodigiosa de intrujices”, é uma falácia pela generalização, recurso bastante conhecido do autor de Como vencer um debate sem precisar ter razão. Até o século XVIII, o ateísmo não chegou a constituir uma “história” contínua, uma vez que suas maiores expressões individuais não escapavam da perseguição, tortura e execução – práticas dogmatizadas pela igreja católica.Os processos movidos por tribunais inquisitoriais, sim, burlavam prodigiosamente a verdade, com o fito de incriminar indivíduos descrentes. Em várias cidades europeias, como Praga e Amsterdam, há um museu com instrumentos do terror imposto pelos abençoados representantes de Deus neste “vale de lágrimas”. Quem maior mal causou ao teísmo foi um monge católico: Nicolau Copérnico. Sua prova matemática de que a Terra girava em torno do Sol, afastou Deus para “o fundo do espaço sem limites” (conforme Durant).
Olavo de Carvalho não esperaria muito para ver uma verdadeira militância ateísta surgir entre intelectos contemporâneos do porte de um Richard Dawkins, Christopher Hitchens, Daniel Dennett, Sam Harris, entre outros.
A segunda frase do excerto olaviano, “O ateísmo, em geral, é uma opção de juventude, prévia a qualquer consideração racional do assunto”, ainda é menos verdadeira que a anterior. A opção pode se originar na juventude, logo que o indivíduo começa a entender o mundo, como foi meu caso. Ainda participava de um grupo de jovens cristãos, quando passei a ler Krishnamurti, Nietzsche e Freud, que me fizeram balançar na fé. Mais tarde, o livro A origem das espécies, de Charles Darwin, cairia nas minhas mãos de uma forma definitiva, arrebatadora. Salvo exceções, o ateísmo é irreversível. A prova empírica dessa verdade está na lista extensa de homens de cabeça branca (ou careca), que inclui nomes como Albert Einstein, Aldous Huxley, Athur Schopenhauer, Bertrand Russel, Carlos Drummond de Andrade, César Lates, Charles Darwin, Lévi-Strauss, Darcy Ribeiro, David Hume, Émile Durkheim, Heráclito, Isaac Asimov, Jacques Lacan, Jean-Paul Sarte, Jorge Luis Borges, José Saramago, Karl Popper, Monteiro Lobato, Noam Chomsky, Oscar Niemeyer, Pablo Neruda, Pablo Picasso, Stephen Hawking, Umberto Eco, Virginia Woolf, entre outros.
Na relação acima, há filósofos, cientistas, poetas, escritores, etc. Todos idosos, que deveriam ser considerados a regra por Olavo de Carvalho (ao invés de focar no senso comum). Ele insiste no equívoco, todavia: “Não se conhece um único caso célebre de pensador que tenha chegado ao ateísmo na idade madura”. Nietzsche, filho de protestantes, constitui um exemplo de que a maturidade intelectual e o ateísmo são mais ou menos coincidentes. Sua juventude, certamente, representou uma fase de transição, em que se libertou do condicionamento imposto a ele desde os primeiros anos de vida.   
A racionalização é um processo psicológico em que o indivíduo encontra raciocínios (mais ou menos lógicos) para justificar sua crença, discurso e atitude. Depois da “revolução copernicana”, depois de Hume, depois de Kant, depois de Spinoza, depois de Feuerbach, depois de Darwin, depois de Nietzsche, depois de Freud, depois do Círculo de Viena (especialmente Rudolf Carnap), depois dos neodarwinistas e depois dos filósofos atuais (Luc Ferry, Comte-Sponville e Michel Onfray), o ateu não tem por que racionalizar, necessidade que se tornou um incômodo ao teísta.
Na sequência, lê-se que “toda fé religiosa coexiste, quase que por definição, com as dúvidas e as crises”. Outra falácia. A dúvida contradiz a fé, que se torna mais vulnerável ao espírito filosófico e científico. A crise é uma possível consequência da dúvida (que resiste ao dogmatismo). A consequência da crise é a perda da fé, ou sua recrudescência por intermédio de novas racionalizações.
O autor atribui ao ateísmo a “rigidez cega” das crenças de adolescente. Por acaso, a fé na maturidade evolui para uma menor rigidez?A cegueira persiste. Na maturidade, o ateísmo é esclarecido. Militante ou não.
Por derradeiro, Olavo de Carvalho conclui, a partir de suas premissas não verdadeiras, que o ateísmo é um “grave sinal de imaturidade intelectual”. Grave sinal? É possível um gradiente quantitativo para “sinal”, do insignificante ao grave, por exemplo? Umberto Eco, Stephen Hawking e Richard Dawkins, considerados grandes intelectuais, seriam imaturos, segundo a ótica do “maior filósofo brasileiro”? 

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