Olavo de Carvalho, que se autoproclama o
maior filósofo brasileiro da atualidade, publica, em nota de rodapé (66) do
livro O jardim das aflições, a
seguinte opinião:
[…] A história
do ateísmo militante é uma sucessão prodigiosa de intrujices. É que o ateísmo,
em geral, é uma opção de juventude, prévia a qualquer consideração racional do
assunto, e uma vez tomada não lhe resta senão racionalizar-se a posteriori mediante artifícios que
serão mais ou menos engenhosos conforme a aptidão e a demanda pessoal de
argumentos. Não se conhece um único caso célebre de pensador que tenha chegado
ao ateísmo na idade madura, por força de profundas reflexões e por motivos
intelectuais relevantes. […] O ateísmo militante é, por si, um grave sinal de
imaturidade intelectual.
Antes de rebater o autor desse libelo,
duas considerações são necessárias:
Na história da Filosofia, nunca houve
uma hierarquização categórica entre pensadores de uma mesma época,
independentemente da “extensão e persistência do influxo do gênio sobre a vida
e as ideias dos homens”. Assim se expressa Will Durant, para justificar sua
escolha dos dez “maiores” (que ele grafa entre aspas). Destarte, não podemos dizer quem é maior entre Platão e Aristóteles, a despeito da distância histórica que nos separa desses dois filósofos.
A propósito, os gregos distinguiam doxa de episteme, opinião de conhecimento. Nesse sentido, anunciei como
“opinião” o excerto de Olavo de Carvalho. Ainda estou para questionar se tais enunciados alcançam esse estatuto.
A primeira frase, “A história do ateísmo
militante é uma sucessão prodigiosa de intrujices”, é uma falácia pela
generalização, recurso bastante conhecido do autor de Como vencer um debate sem precisar ter razão. Até o século XVIII, o
ateísmo não chegou a constituir uma “história” contínua, uma vez que suas maiores
expressões individuais não escapavam da perseguição, tortura e execução – práticas dogmatizadas
pela igreja católica.Os processos movidos por tribunais inquisitoriais, sim,
burlavam prodigiosamente a verdade, com o fito de incriminar indivíduos
descrentes. Em várias cidades europeias, como Praga e Amsterdam, há um museu
com instrumentos do terror imposto pelos abençoados representantes de Deus neste
“vale de lágrimas”. Quem maior mal causou ao teísmo foi um monge católico: Nicolau
Copérnico. Sua prova matemática de que a Terra girava em torno do Sol, afastou
Deus para “o fundo do espaço sem limites” (conforme Durant).
Olavo de Carvalho não esperaria muito
para ver uma verdadeira militância ateísta surgir entre intelectos
contemporâneos do porte de um Richard Dawkins, Christopher Hitchens, Daniel
Dennett, Sam Harris, entre outros.
A segunda frase do excerto olaviano, “O
ateísmo, em geral, é uma opção de juventude, prévia a qualquer consideração
racional do assunto”, ainda é menos verdadeira que a anterior. A opção pode se
originar na juventude, logo que o indivíduo começa a entender o mundo, como foi
meu caso. Ainda participava de um grupo de jovens cristãos, quando passei a ler
Krishnamurti, Nietzsche e Freud, que me fizeram balançar na fé. Mais tarde, o
livro A origem das espécies, de
Charles Darwin, cairia nas minhas mãos de uma forma definitiva, arrebatadora.
Salvo exceções, o ateísmo é irreversível. A prova empírica dessa verdade está na
lista extensa de homens de cabeça branca (ou careca), que inclui nomes como
Albert Einstein, Aldous Huxley, Athur Schopenhauer, Bertrand Russel, Carlos
Drummond de Andrade, César Lates, Charles Darwin, Lévi-Strauss, Darcy Ribeiro,
David Hume, Émile Durkheim, Heráclito, Isaac Asimov, Jacques Lacan, Jean-Paul
Sarte, Jorge Luis Borges, José Saramago, Karl Popper, Monteiro Lobato, Noam
Chomsky, Oscar Niemeyer, Pablo Neruda, Pablo Picasso, Stephen Hawking, Umberto
Eco, Virginia Woolf, entre outros.
Na relação acima, há filósofos, cientistas,
poetas, escritores, etc. Todos idosos, que deveriam ser considerados a regra
por Olavo de Carvalho (ao invés de focar no senso comum). Ele insiste no
equívoco, todavia: “Não se conhece um único caso célebre de pensador que tenha
chegado ao ateísmo na idade madura”. Nietzsche, filho de protestantes,
constitui um exemplo de que a maturidade intelectual e o ateísmo são mais ou
menos coincidentes. Sua juventude, certamente, representou uma fase de
transição, em que se libertou do condicionamento imposto a ele desde os
primeiros anos de vida.
A racionalização é um processo
psicológico em que o indivíduo encontra raciocínios (mais ou menos lógicos) para
justificar sua crença, discurso e atitude. Depois da “revolução copernicana”,
depois de Hume, depois de Kant, depois de Spinoza, depois de Feuerbach, depois
de Darwin, depois de Nietzsche, depois de Freud, depois do Círculo de Viena
(especialmente Rudolf Carnap), depois dos neodarwinistas e depois dos filósofos
atuais (Luc Ferry, Comte-Sponville e Michel Onfray), o ateu não tem por que
racionalizar, necessidade que se tornou um incômodo ao teísta.
Na sequência, lê-se que “toda fé
religiosa coexiste, quase que por definição, com as dúvidas e as crises”. Outra
falácia. A dúvida contradiz a fé, que se torna mais vulnerável ao espírito
filosófico e científico. A crise é uma possível consequência da dúvida (que
resiste ao dogmatismo). A consequência da crise é a perda da fé, ou sua
recrudescência por intermédio de novas racionalizações.
O autor atribui ao ateísmo a “rigidez
cega” das crenças de adolescente. Por acaso, a fé na maturidade evolui para uma
menor rigidez?A cegueira persiste. Na maturidade, o ateísmo é esclarecido. Militante
ou não.
Por derradeiro, Olavo de Carvalho
conclui, a partir de suas premissas não verdadeiras, que o ateísmo é um “grave
sinal de imaturidade intelectual”. Grave sinal? É possível um gradiente
quantitativo para “sinal”, do insignificante ao grave, por exemplo? Umberto
Eco, Stephen Hawking e Richard Dawkins, considerados grandes intelectuais,
seriam imaturos, segundo a ótica do “maior filósofo brasileiro”?
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