domingo, 30 de agosto de 2015

CRÔNICA DE DOMINGO

OLHOS CONTEMPLATIVOS

         As janelas do meu apartamento são enormes, feitas de vidro inteiro e transparente. Na verdade, elas também me servem de porta, com acesso exclusivo para as sacadas. Todos os dias, logo após me levantar, deslizo as duas partes da cortina para os extremos do trilho.
A primeira coisa boa a me ocorrer com esse gesto rotineiro é o gozo propiciado pela claridade. Essa sensação de alívio com o retorno do Sol foi, certamente, muito mais intensa nos meus ancestrais primitivos, que atravessavam com medo a noite ao longo de milhões de anos. Os perigos ainda existem, não mais fantasmagóricos, ou de espíritos maus, não mais representados pelo ataque de animais selvagens, senão os levados a termo pelo próprio homem. Não é por essa herança genética (e memética), todavia, que a noite me causa uma certa angústia.
         Ao recolher as cortinas, certifico-me que o ciclo fundamental da vida se repete, cujo percebimento me dá a certeza de que estou vivo dentro dele.
         Em seguida, através da janela, contemplo a manhã com o que ela apresenta de mais sublime e inefável: o céu azul. Às sensações já expressas acima, junta-se uma que identifico como leveza, a qual me leva a descer o olhar para as ruas que se encontram em frente, onde as pessoas seguem em todas as direções, aparentemente livres dentro de uma ordem intersubjetiva que não imaginam estar presas.
         Não estou à espreita do que faz meu vizinho. Por dois motivos óbvios: ante minha janela, não há casas ou edifícios residenciais; e já evoluí o suficiente para não me ater a enxerimentos, a mexericos.
O vidro transparente da janela, dependendo do ângulo e da menor incidência de luz, faz as vezes de espelho. Ali me vejo também, com uns olhos contemplativos.  

sábado, 29 de agosto de 2015

CRISE DUPLA

Ante uma perspectiva pessimista (para não dizer realista), o parcelamento de salário, feito pelo governador do Rio Grande do Sul, já configura os primeiros passos de uma crise dupla: a das finanças públicas e a da própria constituição do Estado máximo. 
A primeira se agravará de uma forma contínua, a ponto de fazer do parcelamento de salários um consenso, uma estratégia menos radical de enfrentar o problema (algo que é compreendido pela expressão popular "empurrar com a barriga"). 
A segunda crise é mais profunda, subterrânea, e minará paulatinamente as estruturas que mantêm a organização estatal. Para entendê-la é necessário um recuo no tempo até as origens do estado moderno, origens sempre vinculadas à expansão da economia, nunca ao seu encolhimento.

quarta-feira, 26 de agosto de 2015

MIL OLHOS


a janela é espelho
para quem fica
atrás dela
e
é vão
para ver através:
a rua
a torre
o museu
outras janelas
que refletem
o céu
(não mais azul
porque chove
nesta manhã)
as pessoas
que  entram no banco
e saem apressadas
(abrem e fecham
e abrem e fecham
seus guarda-chuvas)
não sabem elas
que mil olhos
as veem
das janelas

quarta-feira, 19 de agosto de 2015

AGOSTO


Agosto não é mais o mesmo (nunca será o mesmo, segundo a fluidez já pensada por Heráclito). 
O agosto deste ano pouco soprou do norte e, quando o fez, trouxe nuvens chuvosas ao invés do calor enfumaçado. 
O agosto deste ano floresceu mais cedo, com um céu que só ocorre em outubro. 
O agosto deste ano não enlouqueceu cachorro algum (pessoas enlouquecem a todo tempo, loucura velada, à flor da pele da normalidade). 
O agosto deste ano, finalmente, libertou-se do velho paradigma, fundamentado na ignorância e na superstição.

terça-feira, 18 de agosto de 2015

SOBRE O FOTOSHOP


Num futuro, talvez mais próximo do que pode imaginar o otimista, as pessoas voltarão a viver de uma forma mais simples, sem aparentarem mais do que são na realidade. Umas farão isso por vontade própria, outras por força das circunstâncias. Elas olharão para as fotografias de seus ascendentes e admirar-se-ão da pele lisa e sem manchas que os caracterizava nesta época. Sim, o fotoshop não resistirá por muito tempo, o recurso também envelhecido, tornado obsoleto por uma nova consciência.
Proponho aos meus contemporâneos que não mais usemos o recurso da aparência, que sejamos os primeiros a optar por uma evolução livre em direção ao ser autêntico.

(A propósito, olhando a foto acima, saio em defesa das sardas, poéticas, pictóricas.)

sábado, 15 de agosto de 2015

ACADEMIA SANTIAGUENSE DE LETRAS

         Entre os diversos conceitos de cultura, destaco o seguinte: “complexo de atividades, instituições, padrões sociais ligados à criação e difusão das belas-artes, ciências e afins” (Houaiss).
         Entre as belas-artes, a Literatura é a mais conhecida e difundida em Santiago, a ponto de fundamentar o epíteto Terra dos Poetas dado a nossa cidade.
         Um escritor, fechado em sua sala, dedicando-se a um determinado gênero textual, constitui o primeiro agente da cultura (de acordo com a significação acima). Ele cria culturalmente, no entanto sem sempre difunde o produto de seu trabalho. Franz Kafka, por exemplo, deixou sem publicar quase cem por cento do que escreveu, pedindo, antes de morrer, a um amigo que queimasse tudo. Aqui, Aureliano de Figueiredo Pinto escreveu poesia e romance, que não foram compartilhados pela sociedade de seu tempo.
         A Academia Santiaguense de Letras, entre outros objetivos, pretende ser uma instituição que auxilie a desenvolver e expandir a cultura. Ela representará um segundo agente, socializado e socializador.
         (Graças ao fator associativo, o homem se elevou muito acima dos demais seres vivos.) 

segunda-feira, 10 de agosto de 2015

HOMEM-BOMBA É FIEL

Um cristão acha absurdo um muçulmano acreditar que, se morrer pela causa político-religiosa, vai para o céu, onde desfrutará da doce companhia de virgens. 
Há dois motivos que o levam a fazer esse julgamento moral, depreciativo: a "causa político-religiosa" inclui a morte de dezenas, centenas ou milhares de pessoas não islâmicas; e, como objeto de fé, o regalo de virgens.
Não se encontra estudo com o chamado homem-bomba, uma vez que ele é o próprio dispositivo a provocar a explosão e o primeiro a ser inteiramente despedaçado. O que se passa na cabeça dele, segundos antes de levar a cabo sua missão? Obediência à causa? Desejo de se transformar em herói post mortem? Fé no paraíso?
Dessas três especulações, uma resposta afirmativa coincide com a do cristão: a fé no paraíso.
Isto posto, continua-se a indagar. O que há no paraíso, que leva a cristandade a desejá-lo ingenuamente? A presença de Deus? Como, ele não é onipresente? Felicidade eterna? Essa pretensão atemporal não nega a criação do mundo, sua temporalidade? Lugar aprazível? O "comer da árvore da vida" (segundo o Apocalipse)? 
Não há diferença significativa entre o cristianismo e o islamismo, quando à fantasia do paraíso.
Ao criticar a fé do homem-bomba, exemplar típico do fundamentalismo jihadista, o cristão incorre no desrespeito à fé do outro, contrariamente à exigência que faz em relação à sua fé.
Essa contradição, engendrada por uma suposta superioridade da religião cristã, é cada vez mais flagrante quanto mais se recua na história dos últimos quinze séculos. Não há necessidade de voltar à Idade Média, todavia, para ilustrá-la com fatos. Em 1929, o Papa Pio XI firmou um acordo com Benito Mussolini (um dos maiores fascistas da História), para confirmar o catolicismo como religião única na Itália - ato ditatorial que já fizera o imperador Teodósio em 1625 AP. 
Pelo Tratado de Latrão, protestantes (também cristãos), judeus, muçulmanos, entre outros religiosos, foram relegados à clandestinidade.

HOMEM FOGO COALA


Ontem o Fantástico apresentou uma reportagem sobre um coala órfão.
O homo sapiens foi responsável pela multiplicação dessa espécie a partir de 45 mil anos atrás.
Ao chegar ao continente hoje ocupado pela Austrália, o homem já dominava o fogo, praticando as queimadas de florestas e bosques densos como forma de criar áreas abertas que atraíam animais mais fáceis de se caçar.
O eucalipto era uma árvore rara no ecossistema de então, todavia, mais resistente ao fogo, espalhou-se por toda parte.
A mudança (que demorou milênios para se efetivar) beneficiou os animais que se alimentavam dessa planta - os COALAS.
Mais tarde, o homem transportaria o eucalipto para a América.                                                                                
O conhecimento é tão atraente quanto o é a poesia.


sábado, 8 de agosto de 2015

NOITE, MORTE E SEUS ASSOMBROS


A noite foi, com toda certeza, a mãe do medo humano. Ela gestou em suas entranhas as criaturas mais horripilantes: bichos-papões, fantasmas, espíritos do mal...
Esses seres disformes aterrorizaram a infância da humanidade, cujos memes ainda se manifestam mais uma vez no indivíduo (ao longo de seus primeiros anos de vida).
A adoração ao Sol, observada em quase todas as culturas, originou-se no fato de a luz dele advinda dissipar a escuridão a cada dia. O horror ficava restrito aos sótãos e porões, às florestas fechadas, ao mundo subterrâneo…
Antes do culto solar, o homem primitivo conheceu o fogo e o domesticou, para, entre outros empregos, proteger-se das assombrações noturnas.
Durante o primeiro estágio da evolução religiosa, chamado de animismo, nossos ancestrais endeusaram elementos ou fenômenos naturais. O próprio Sol não escapou dessa mitificação, para o qual se rendeu culto (inclusive com o sacrifício humano). O trovão, outro exemplo, foi personificado como “senhor do raio”, que poderia fulminar um indivíduo inescapavelmente.
A morte, mais assombrosa que todas as noites juntas, desencadeou um outro processo de mitificação (ainda inconcluso). Não sendo possível evitá-la, arranjou-se uma forma de transcendê-la. Nenhuma religião foi mais pretensamente exitosa nesse mister do que o Cristianismo, que vige atualmente graças à promessa de vida eterna a partir do mito fundador: a ressurreição de Jesus Cristo.
Com a revolução industrial, o homem passou a morar em cidades cada vez maiores e melhor iluminadas, vindo a perder o medo da noite. Em relação à morte, todavia, ele continua a temê-la instintiva e racionalmente.
A mitificação de uma outra vida além da “cova gélida e escura”, Nietzsche percebeu isto muito claramente, conspirou contra a vida terrena, real e única, enchendo-a de medos e dúvidas novos. 

terça-feira, 4 de agosto de 2015

UM COZINHEIRO ESPECIAL

TODOS OS DIAS, entre dez e onze horas, faço o almoço. Apenas a mandioca (aipim ou macaxera) e a polenta me levam à cozinha um pouco antes das dez. A primeira é obrigatória, quando o prato principal é carne bovina assada. A segunda, quando o prato principal é frango ou peixe. 
Gosto de tomar um uísque (com gelo) e dialogar com os mais eminentes intelectuais do mundo contemporâneo, entre os quais, Nietzsche, Richard Dawkins, Christopher Hitchens, Zygmunt Bauman, Luc Ferry, Comte-Sponville, entre outros. 
LEIO e mexo nas panelas. 
Todos os dias. 
Na falta de uísque, abro uma garrafa de vinho branco. Na falta de vinho, tomo água, muita água. 
A aproximação com os grandes pensadores, todavia, não me faz pensar ser um intelectual das alturas. Considero-me um excelente cozinheiro.

segunda-feira, 3 de agosto de 2015

SOBRE A VIOLÊNCIA HUMANA





Desmond Morris escreveu em O macaco nu: “Para compreendermos a natureza dos nossos instintos agressivos temos de encará-los segundo a nossa origem animal”. Em seguida, o zoólogo britânico estabelece como verdade os dois motivos que levam os animais a lutar em si: criar/ manter uma hierarquia social e estabelecer direitos territoriais.

         A agressão entre os humanos (que desconstrói o preconceito religioso que relaciona o termo “humano” à bondade), extrapola aspectos que poderiam ser atribuídos à carga genética de seus ancestrais primatas (por exemplo). Ao longo de alguns milhões de anos, o australopithecus inseriu a carne de outros animais como item indispensável à sobrevivência própria. A exoviolência foi potencializada pelo homo erectus, que passou a desenvolver as primeiras tecnologias para matar. Com a chamada Revolução Cognitiva, a partir de 70 mil anos Antes do Presente (AP), o homo sapiens aperfeiçoou as armas da pedra lascada (e de madeira) para dominar o planeta e levar à extinção muitas espécies de grande porte, como foi o caso dos diprotodonte (na Austrália), dos mamutes (na Sibéria), das preguiças-gigantes (na América). O homo sapiens, avançando e dominando todos os territórios, constituiu-se, segundo o historiador Yuval Noah, na “força mais importante e mais destrutiva que o reino animal já produziu”.

         A matança de outros animais para sobreviver, certamente, fez com que o homem transferisse a prática contra os membros da própria espécie – para manter hierarquia e poder dentro de determinado grupo.

         Hoje os japoneses podem ser observados a caçar as baleias por interesses comerciais, uma extrapolação da necessidade alimentar. A maioria das guerras foi realizada por esse motivo, justificando-se, sob as pretensões dos envolvidos, a morte de milhões de indivíduos humanos.

         Em algum momento de sua evolução, o homem passou a incluir a morte de outros animais nos jogos, para o simples entretenimento. Noutro tempo, os jogos (que precederam a própria cultura, segundo Johan Huizinga) incluíram a criatura humana para ser abatida em competições violentas. A caça propiciou um excedente em alimento e se transformou em jogo (para que o caçador não perdesse o jeito). Essa prática é mais evidente a partir da Revolução Agrícola, aproximadamente há 12 mil anos.

         Nos países mais ricos, a caçada se perpetua como uma tradição, um valor cultural. O prazer de matar desportivamente, todavia, consiste numa anomalia do homem civilizado, não autopercebida pelo desportista. Assim se comporta o matador de Cecil, o leão do Parque Nacional de Zimbábue. Ele é protegido pelas leis de seu país, ponta de lança de uma civilização que também se caracteriza pela crueldade gratuita. A comoção suscitada pelo fato denuncia a má consciência do cristão, cuja filiação religiosa foi fundada num ato violento, no sangue derramado na cruz.

         O mito é uma invenção do homo sapiens, uma forma poderosa de amálgama social – reguladora da natureza instintiva. A ficção nasceu com a linguagem, e ambas são produtos da Revolução Cognitiva, humanização que se efetivou ao longo dos últimos 70 mil anos.