terça-feira, 22 de janeiro de 2013

SOBRE NOSSA SURDEZ

No verão, não ouvimos o estrídulo desesperado da cigarra macho. Certamente, isso não ocorre porque o espécime homóptero desapareceu ante a soalheira da tarde (sem encontrar sua fêmea), mas porque, para ouvi-lo, não temos mais o sentido suficientemente apurado. Não temos mais - o que nossos antepassados tinham no mais alto grau de desenvolvimento. A mente moderna passa a sofrer de uma perda crescente da sensibilidade, causada pelo barulho que fazemos artificiosamente. Isto mesmo! Nosso dia a dia é movido pelo artifício, o grande paradigma que nos distancia das vozes da natureza. O estrídulo da cigarra é apenas uma dessas vozes, entre milhares de outras (desde a emitida por um simples inseto à música das esferas). A nossa surdez é um fato ainda não percebido em decorrência da insensibilidade da razão, que se faz mais e mais insensível em decorrência do próprio fato gerado por ela. À exceção do relógio que tiquetaqueia em algum lugar da casa e do sino da Matriz (que marca o meio-dia e a hora da Ave-Maria), tudo mais agride pela falta de ritmo. Ouvimos das coisas seus descompassos, seus ruídos determinados pela forma aleatória com que se arranjam no tempo e no espaço. Ouvimos do coração sua arritmia, não o ritmo natural. Por isso, os versos que produzimos são tão ruins, a despeito de reivindicarmos a condição de poetas. Por isso, os nossos desejos e frustrações ocorrem com a mesma intensidade e revelia - sístole e diástole de um individualismo que beira a enfermidade. Não apenas apresentamos problemas de audição, mas também de memória, a ponto de nos esquecermos do outro, ainda que o outro seja, por exemplo, nosso pai idoso num asilo, ou nosso filho bebê num automóvel. A prova dessa verdade consiste em não ouvirmos o estrídulo desesperado da cigarra macho no verão. 

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