terça-feira, 14 de setembro de 2010

A (CON)TRADIÇÃO

O culto ao passado evidencia uma contradição (que é ignorada pelos cultuadores com o propósito de justificar a cíclica rememoração). O cavaleiro elegantemente pilchado na Semana Farroupilha, por exemplo, imita o homem real, de carne e osso, que viveu dias difíceis outrora, ou não passa de uma representação do mito arquetípico do “centauro”, do “monarca”? Até onde a memória de nossos antepassados alcança, não há testemunho de que a vida no campo e os valores sócio-culturais a ela inerentes constituíssem algo maravilhoso. Depois de guerras brutais, fratricidas, que mancharam de sangue a Província de São Pedro, o gaúcho obrigou-se a trabalhar duríssimo no lombo do cavalo ou no cabo da enxada e do arado. Na entressafra, tropeava e carreteava, para não ser absorvido pelo latifúndio (que transformava em peão os desafortunados, pusilânimes ou indolentes). Nenhuma das alternativas expressas acima responde à pergunta que as antecede. O tradicionalismo é uma praxe social do presente. Os homens do nosso tempo dão-se ao luxo de reviver, pelo menos uma vez ao ano, o hábito de andar a cavalo pelas ruas da cidade, num padrão determinado pelos estatutos do MTG. Engana-se o analista que aponta o “presente degradado” como causa da tradição. Pelo contrário, é um excesso de riqueza e ócio que produz esse devaneio, essa fantasia sobre a identidade do gaúcho, ou gauchidade. Os nossos antepassados não tinham essa cultura, preocupavam-se muito com o presente – e com o futuro. A contradição, portanto, consiste na discrepância entre o que somos e o que fomos.

(Este artigo é uma tentativa simples de pensar algo diferente que não seja a mesma coisa.)

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